«Diante da Lei»
Conto de Franz Kafka
500- «DIANTE DA LEI»
Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede
para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode
autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar
mais tarde. – ”É possível” – diz o guarda. – ”Mas não agora!”. O guarda
afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para
olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. – ”Se tanto te atrai,
experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E
ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez
mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro
depois de mim”. O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia
de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda
envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro,
longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para
entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco
desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as
suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos
interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas
são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no
fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que se
provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o
guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: – ”Aceito apenas para que te convenças
que nada omitiste”. Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem
observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo
à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e
depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e
como, ao fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas
das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda.
Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu
redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um
clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está
próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos
anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe
um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da
porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas
acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. – ”Que queres tu saber
ainda?”, pergunta o guarda. – ”És insaciável”. – ”Se todos aspiram a Lei”,
disse o homem. – ”Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu,
pediu para entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no
fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: – ”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar,
porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.
Franz Kafka
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