«O Senhor dos Navegantes»
Escultura de Alexandre Leonato
513- «O SENHOR DOS NAVEGANTES»
Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina,
a capela do Senhor dos Navegantes divisa-se de longe, como um farol. E a ela,
mais do que a uma luz que brilhasse na noite atlântica, os pescadores enviavam
esperanças e desesperos quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do
mar. Porque ficava alta, ao fim de íngreme, pedregoso carreiro, raras gentes lá
iam, salvo em dia de festa, com morteiros e filarmónica, uma vez cada ano.
Faiscando pela sua solidão e largueza panorâmica, eu encontrara, porém, maneira
de a atingir, naquelas tardes de estio, sem me fatigar. Para subir às montanhas,
um livro vale mais do que um bordão – e, com um livro sob o braço, punha-me a
caminho. Logo que as pernas se cansavam, sentava-me e lia, enquanto os melros
iam cantando nas velhas árvores da encosta. Sem o livro, pequeno seria o meu
repouso e continuaria a ascensão antes de refeito, que a tendência de quem
anda, leve rodas, leve hélices ou apenas, modestamente, os pés com que nasceu,
é, já se sabe, chegar com brevidade ao ponto de destino – mesmo que nada tenha
lá que fazer. Com um livro, é outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do
que os braços duma mulher e só desejamos interromper a sua leitura no final dum
capítulo ou em parágrafo onde possamos retomá-la facilmente. Entretanto, as
pernas recobram forças.
Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, demorei-me
a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, então muito sereno, com suas
velas graciosas e fugidias. Em baixo, estendia-se a grande praia semi-selvagem.
À direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contrastando,
espaireciam casitas modernas, todas faceiras e coloridas, ao passo que, da
banda oposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre
a areia e tão velhas, negras e roídas pelos anos como se fossem as mesmas que deixaram
ali os primeiros habitantes do litoral. Dir-se-ia que o tempo parara do lado
onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de colaboração com a morte,
para se activar apenas naquele onde se descansava à sombra tranquila dos
pinheiros.
Após esse longo olhar de amor com que todos os dias eu envolvia o oceano, a
terra e o céu, sentei-me e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porém, que
abri o livro, um rumor veio de dentro da capela. Surpreendido, voltei-me e
notei que a porta estava semi-aberta. Era a primeira vez que isto me acontecia.
Até então, eu encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com
esse sabor poético, fi no, voejante, que parece destilado pelo ar e é próprio
das ermidas que padroam as montanhas. Agora, os rumores continuavam. Senti e vi
um homem transpor a porta. Trazia os braços fechados sobre numerosos ex-votos –
barcos de cera e pequenos quadros, ingénuas pinturas feitas sobre madeira. Ao
dar comigo, estacou, contrariado; teve, em seguida, uma expressão incerta, logo
um movimento de indiferença, e dirigiu-se, resoluto, para o extremo do adro.
Desse lado, o flanco da colina descia quase a pique, até um matorral que se
estendia lá em baixo. Era um temível despenhadeiro e, para defesa de quem vinha
ao Senhor dos Navegantes, haviam construído ali um murozito, que, da banda de
dentro, formava bancada, em semi-círculo. Nessa parte do adro o homem se
sentou, a uns quatro metros de mim.
Descontente com a sua presença inoportuna, eu ia baixar, de novo, os olhos
sobre o livro, quando ele me disse:
– Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladrão... Não é verdade?
É certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado as
suas forças em relação às minhas e concluído que, em caso de luta, talvez ele
me vencesse. Não que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados,
enquanto eu não chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os
braços muito mais possantes do que estes, tão franzinos, de que eu me servia
para pegar no livro. Os seus olhos claros não precisavam de óculos, ao passo
que os meus, sem o auxílio de vidros, não me permitiriam dar dois passos
seguros, mesmo para fugir. E embora as linhas físicas dele não se mostrassem
rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e não sei mais o quê de seu todo,
sugeriam a ideia de homem habituado a trilhar as estradas do Mundo, de varapau
na mão, ao assalto da vida.
Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me
ouvir, acrescentou:
– Não, não sou um ladrão. Isto – e apontava os ex-votos – pertence-me. Eu é que
não os mereço...
Definitivamente perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, não me recordo o
quê, uma necedade por certo, e ele voltou:
– O senhor não é de cá, pois não? Está a veranear na praia?
– Estou.
– Logo vi. A gente da terra não tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe
basta o trabalho.
Não entendi logo se ele falava assim para me ser desagradável ou simplesmente
para demonstrar a sua perspicácia.
Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, mas
senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer:
– O senhor esteja à sua vontade. Eu não me demoro. E não tenha medo de mim. Não
faço mal a ninguém. Todos nós, é certo, já algum dia fizemos mal – e eu fiz um
grande mal, mas isso foi há muito ano... – A sua voz repetiu, de modo profundo:
– Há muito ano...
– É claro que não tenho medo – declarei, num tom frio. Na verdade, porém, eu
enervara-me. Tornei a abrir o livro e fingi ler.
O homem calou-se. Vergado sobre os ex-votos, as suas mãos iam desfazendo os
barcos de cera e arremessando-os para o abismo, para o sarçal que havia lá no
fundo. Deles reteve apenas a extremidade dum mastrozito com a sua bandeirola,
que fez voltejar na ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice que se tem para
as coisas frágeis, e logo enfiou na botoeira do casaco. Depois, estendeu o
braço, agarrou uma pedra e deu-se a partir os quadros onde se viam embarcações
de pesca em luta com o mar embravecido e o Senhor dos Navegantes de pé sobre
nuvens.
Todos eles tinham datas, algumas seculares, e legendas de reconhecimento, com
muitos erros ortográficos e mal desenhadas letras. O homem lia-as antes de
despedaçar as pequenas tábuas onde elas estavam inscritas e, em seguida,
lançava os destroços lá para baixo, para o mesmo lugar dos barquitos de cera.
Entretanto, parecia falar sozinho:
– Nunca salvei ninguém. Ninguém! Eu bem o desejaria fazer, mas já não tinha
forças para isso. Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstâncias
favoráveis...
Levantou-se e voltou a entrar na capela. Pensei ser o momento de me retirar.
Ele ia julgar que eu era cobarde, mas isso não me importava. «Verdadeiramente –
disse a mim próprio – o que busco nesta colina é sossego, e sossego, hoje, não
existe aqui».
Antes, porém, de eu haver tomado uma decisão definitiva, o homem surgiu,
novamente, no adro, com outra braçada de ex-votos. Eram, agora, mãos, seios,
cabeças e pés de cera. Ou por falta de paciência para os desfazer um a um ou
por lhe ser anojoso partir aqueles símiles de membros humanos, que lhe
acordariam, porventura, remotas superstições, ele acercou-se do murozito e
lançou os ex-votos, duma só vez, para as profundidades do desfiladeiro. Depois,
quedou-se, um momento, como eu fizera antes, a contemplar o oceano.
– O senhor gosta disto? – perguntou, voltando-se ligeiramente para mim.
– Isto é bonito – respondi-lhe. – É um magnífico panorama...
– Sim, não é feio... – murmurou. – Podia ter saído muito melhor, mas, enfim...
já os romanos gostavam deste sítio. Ninguém o sabe ainda, senão eu, mas a
verdade é que houve aqui um crasto.
Olhe, acolá, à esquerda, antes de se entrar
no adro, se alguém escavar, encontrará restos de sepulturas... E à praia, lá em
baixo, chegaram a vir muitas galeras... Existia, então, um pequeno porto, que o
tempo assoreou...
Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava.
Tentei examiná-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas, sempre
de olhos fixos ao longe.
– Efectivamente – disse-me, depois – se olharmos bem para a terra, para o mar e
para o céu e se pensarmos na grande variedade de seres que há no Mundo e em
todo este admirável equilíbrio planetário, parece-nos que estamos perante um
milagre. Não é assim? A si também não lhe parece o mesmo, quando pensa, por
exemplo, nas vidas submarinas?
– Sem dúvida, o Mundo é muito variado e...
Ele interrompeu-me:
– Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo.
Um simples insecto, que encontramos num monte e que podemos facilmente esmagar
com o pé, se ele não fugir, é capaz de levar-nos a meditar sobre o mistério da
criação, é capaz de arrastar o nosso pensamento por caminhos obscuros que,
momentos antes, não tínhamos sequer admitido percorrer...
O homem interrogou-me bruscamente:
– O senhor o que é? Qual a sua profissão?
Eu disse-lha e ele pareceu contente:
– Ah, muito bem! Então pode compreender... Não é verdade que o Mundo parece
feito por uma imaginação portentosa? Por uma inteligência que nenhum homem pode
igualar?
– Algumas vezes tenho reflectido sobre isso... – confessei, modestamente.
– Aí está! – exclamou ele. – Aí está. Mas o senhor engana-se! Pelo menos,
engana-se em metade...
Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado, ele de pé; eu tinha de olhá-lo de
baixo para cima e sempre com receio de que estendesse as mãos e me dominasse.
– Ora diga-me uma coisa. Nunca lhe pareceu que essa inteligência havia ficado a
meio do seu trabalho? Que não tinha ido até onde parece que pretendia ir?
– Não sei. A nossa razão tem limites. Para além da nossa razão podem existir
outras razões, que não são explicáveis...
– Era aí, justamente, onde eu queria chegar! – Ao dizer isto, o homem sentou-se
ao meu lado, dobrando-se levemente para a frente, com os braços apoiados nas
pernas e as mãos juntas. A sua voz adquiriu, então, um murmurejar de
confidências e de quem não sente pressa alguma:
– Tudo correu muito bem, a princípio – declarou, como se continuasse uma
narrativa interrompida. – Eu tinha um poder infinito. E uma imaginação para
além de todos os prodígios. Até eu próprio me admiro, hoje, disso. Bastava
pensar uma coisa e o meu pensamento materializava-se rapidamente, adquirindo
forma e vida. A minha fantasia não encontrava limite algum e os próprios
habitantes das profundidades deste mar que estamos vendo o atestam. É um prazer
que o senhor não conhece tornar realidade o próprio absurdo. Mas, nesse tempo,
também eu não sentia esse prazer; eu não fazia ideia alguma do que era absurdo
e do que era lógico, do que era belo e do que era feio, do que era bom e do que
era mau.
Estas definições só se estabeleceram mais tarde, justamente quando surgiram os
limites... Eu criava, criava, como num delírio. E não há dúvida de que a minha
principal obra foi isso a que os homens chamam Universo, a mecânica celeste, o
Infinito... os senhores andam, com a vossa ciência, a colocar lá algumas
balizas, mas é trabalho mais difícil do que se quisesse remover com uma colher
de chá a terra duma montanha...
Enquanto falava, o homem olhava para o chão, como se não desejasse ver nos meus
olhos o efeito das suas palavras. Depois, mudou o tom de voz:
– Um dia, porém, senti-me decadente. As aves, por exemplo, são um indício do
meu declínio. Não sei se o senhor é viajado, se conhece a Ásia e a América, as
grandes florestas tropicais onde há aves maravilhosas.
Mas se não conhece, não importa; tem visto isso, pelo menos, nos livros com
estampas multicolores. Parece-lhe – não é verdade? – que há uma diversidade
deslumbrante, uma fantasia inesgotável no mundo das aves. Pois não é assim! Se
observar bem, verá que não é assim. A minha imaginação havia já começado a
diminuir, começava já a aproximar-se do que viria a ser a imaginação dos
homens.
Criei um pássaro e os outros foram apenas variantes. Utilizei o primeiro modelo
e fi-lo de todos os tamanhos, desde a avestruz, tão grande que pode ser
cavalgada, até o colibri, que, de minúsculo, se confunde com um insecto. A
seguir, fi-lo de todas as cores e com todas as combinações de cores. Depois, em
vez de criar, pus-me a exagerar determinadas parcelas do que já havia feito. E
cheguei, assim, até à caricatura da minha própria obra. A algumas aves
limitei-me a esticar-lhes as pernas, as caudas ou os bicos, de tal forma que
estes ficaram grotescos e muito maiores do que o corpo. A outras dei-lhes uma
amplitude de asas de que não careciam ou deixei-lhes apenas uns simples cotos.
Variei-lhes, também, o fulgor dos olhos e a composição dos seus gorgeios,
deixando umas eternamente mudas e obrigando outras a cantarem até na hora da
morte. Mas tudo isso eram simples pormenores, porque, no fundo, a ave, a ideia
fundamental, era a mesma.
Eu parecia um desses artistas que realizou, certo dia, uma descoberta feliz e
passou, depois, o resto da vida a lutar desesperadamente para dar a ilusão de
que não se repetia, quando, na realidade, não fazia outra coisa senão
plagiar-se a si próprio...
O homem calou-se subitamente e, soerguendo a cabeça, olhou-me pela primeira
vez, desde que se havia sentado.
– O senhor está a pensar que sou um louco, não é verdade?
Foi, então que, por meu turno, baixei os olhos, admitindo de novo que ele
poderia, em qualquer momento, lançar-me por cima do murozito de resguardo, como
fizera aos ex-votos.
– Não, senhor. Estou a ouvi-lo com muito interesse. O que acontece é que se vai
fazendo tarde...
Ele examinou atentamente o céu, como se medisse o Tempo:
– Não, tarde, não é... São apenas cinco horas... Dê cá um cigarro.
Passei-lhe o maço, ele meteu-lhe os dedos, riscou, devagar, um fósforo, soltou
o fumo e tornou:
– Com o mundo vegetal acontece a mesma coisa. O que é uma árvore? O que é uma
planta? Uma raiz metida na terra. Para evitar a monotonia, tive de dar
variedade às folhas, às flores, aos frutos e aos aromas. Mesmo aos troncos.
Mas, apesar de tudo, é sempre uma raiz metida na terra. Ora não era isso que eu
queria.
Eu não queria o Mundo submetido a uma repetição perpétua. Eu desejava que ele
se modificasse constantemente. O senhor já pensou que poderiam perfeitamente
existir bosques aéreos e que o homem deveria andar no fundo dos mares ou no
espaço celeste com tanta facilidade como anda aqui na terra? O senhor não vê
que os homens estão todos os dias a procurar corrigir os defeitos do meu
trabalho? O que é um avião ou um escafandro senão um remendo à minha obra?
Mesmo os que me adoram, passam a vida a discordar de mim e a tentarem emendar o
que eu fiz. Quando imploram as minhas graças para as suas infelicidades, não
fazem, no fundo, outra coisa do que censurar-me, pois o que é uma súplica senão
uma revolta que não se pode exteriorizar? – Sorriu vagamente e ajuntou: – Só
não me amaldiçoam porque ainda me julgam mais forte do que eles...
Voltou a calar-se. Depois, calcou o cigarro, ainda quase inteiro, e, com um tom
doce, melancólico, confessou:
– Eles têm razão, coitados! Sucumbi antes de realizar integralmente a minha
obra. O que devia ser mutável tornou-se imutável e as leis que ficaram a reger
o Mundo são impiedosas. Eu só me lembrei de criar o homem muito tarde. Já havia
feito os outros animais, já havia mesmo esgotado toda a fantasia no exagero dos
pormenores, quando me ocorreu uma outra variante. A minha tendência fora, até
aí, dar aos bichos quatro apoios sobre a terra ou sobre as árvores. Pois bem!
Aos novos seres eu daria, como às aves, apenas duas patas. Mas o senhor não
pode imaginar o que senti ao ver de pé, entre os outros, o novo casal. Eu
estava a criar o canguru e tão impressionado fiquei que lhe pus logo dois
embriões de pernas e deixei-o incompleto para todo o sempre. No meio dos outros
bichos, que se moviam alegremente, com jubilosos ruídos na manhã da sua vida, o
homem e a mulher, únicos que eram verticais, dir-se-iam dois pinguins entre um
bando de pássaros chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber como orientar-se.
Mostrava-se tão triste, tão incerto no seu destino, que tive de repente pena
dele. Porque fora talhado ao alto, o seu próprio sexo se apresentava menos
oculto do que o dos outros animais e parecia vexá-lo. No ocaso do meu poder, eu
começara a atribuir, por fraqueza imaginativa, diferentes funções a um mesmo
órgão. Para as aves bastara-me um tubo de vazão; para os outros viventes criei,
inutilmente, dois – e ao segundo impus uma dupla utilidade. Quando verifiquei o
erro, era demasiado tarde: dali em diante, a própria vida humana brotaria dum
cano de esgoto. Assim, a piedade que eu senti pelo homem ia-se tornando cada
vez maior.
Hesitei um momento e decidi: «É a este que eu me darei. É a este que eu darei o
que ainda resta de grande em mim» E fundi a minha decadência, o crepúsculo da
minha potestade, naquele melancólico animal. Foi outro erro, o meu maior erro.
O homem ficara com todas as aspirações dum deus e não era completamente deus.
Surgiram, devido a isso, inúmeros conflitos. O homem queria ser eterno como o
deus que ele guardava dentro de si e era, pelo contrário, tão efémero como os
outros animais. Queria ser feliz, impelido por aquela obscura reminiscência de
quando uma parte dele me pertencia a mim, sua divindade, e havia de passar
milénios sobre milénios a lutar para ser feliz, sem nunca o poder ser por muito
tempo. Só o era integralmente por alguns minutos e justamente quando fecundava
novas dores humanas. Eu havia-o deixado tão desamparado e com tantos problemas
a resolver, que a própria caverna, em vez de ser apenas um ponto de partida,
foi, ao contrário, um ponto de chegada – a sua primeira conquista.
O Mundo ficara imperfeito e o homem com uma ânsia de perfeição impossível. O
Mundo ficara incompleto, injusto e sem finalidade visível e o homem deu-se a
lutar para que o Mundo tivesse para ele tudo aquilo que o Mundo não tinha.
Quando não pode lutar de outra maneira, recorre às hipóteses. São as hipóteses
que o têm amparado desde que ele vive. Eu sinto remorsos, creia, por tudo
quanto fiz... Sinto especialmente remorsos por tudo quanto não cheguei a
fazer...
O meu interlocutor levantou-se, meteu as mãos nos bolsos e caminhou, como
opresso, até à extremidade do muro que nos protegia do abismo. Vi-o olhar lá
para baixo, para os destroços dos ex-votos, vi-o, depois, estender a vista até
ao mar e, em seguida, voltar-se para mim:
– Então, eu próprio comecei a lutar também contra a minha obra. É claro que, ao
fundir-me no primeiro homem, fiquei mortal como ele. Mas gozo, ao contrário dos
outros, o privilégio de guardar memória das muitas vidas que tenho vivido.
Lembro-me de tudo desde o começo do Tempo, desde que fiz o Mundo. E nisso está
o meu principal sofrimento, porque a memória, para quem praticou o mal, é, como
se sabe, o maior castigo que existe. Sofro ainda porque os homens levam, às
vezes, milhares de anos para acreditar no que é evidente. Quando lhes digo a
verdade, eles maltratam-me. Quando lhes grito, por exemplo: «O Mundo está mal
feito e é preciso, dentro das vossas possibilidades humanas, corrigir o Mundo»
– os mais fracos, os mais ingénuos, ficam a olhar para mim, duvidosos ainda
sobre se é ou não verdade o que lhes digo, enquanto os mais fortes mandam
imediatamente perseguir-me. Se, para me defender, declaro: «Tenho a certeza de
que está mal feito, pois fui eu próprio quem o fez» – então consideram-me
louco, bruxo, herege, visionário, e perseguem-me da mesma maneira. Poucas vezes
tenho morrido na cama, como morrem os generais e a maioria dos outros homens.
Ao contrário, tenho sido esquartejado, queimado vivo, crucificado, enforcado,
fuzilado, guilhotinado, electrocutado e gaseado. A cada uma das minhas vidas
foi sempre aplicada a moda a que cada época e cada povo obedecem para matar os
seus inimigos. Disso não tenho que me queixar... – acrescentou, com um sorriso.
– Há pouco, contei-lhe que, ali, à entrada do adro, se encontra um velho
cemitério romano. Decerto, o senhor não acreditou. Compreendo perfeitamente: no
seu lugar, eu também duvidaria. Mas pode ter a certeza de que estou lá... Ou,
se já não existe resíduo algum do meu corpo de então, deve estar lá, pelo menos,
uma fíbula que eu usava nesse período. Enterraram-me ali depois de me terem
supliciado brutalmente, só por eu haver dito que, como criador que fora do
Mundo, vivia a penitenciar-me do meu tremendo erro. Eles julgaram que, com
isso, eu pretendia ser mais importante do que o imperador de Roma e
liquidaram-me...
Um bando de gaivotas ladeou a colina, sobrevoando a praia. A luz da tarde ia
diminuindo de intensidade e dando cores suaves aos arredores da capelita, ao
próprio adro, onde a voz do homem prosseguia:
– Se eu lhe contasse o que observei e sofri através dos Tempos! Mas nunca mais
acabaria e vejo que o senhor está com pressa... O que me valeu nos últimos
séculos foi a invenção da tipografia. Sem isso, teria sofrido ainda mais, dado
que as minhas últimas vidas passei-as, quase inteiramente, nas prisões. Assim,
sempre arranjo alguma coisa para ler. Tenho lido muito, muito; desde há
quatrocentos anos quase não faço outra coisa. Por um lado, a leitura
distrai-me, leva-me a esquecer a cadeia; por outro, tortura-me, pois é pelos
livros dos homens que eu vejo, sobretudo, o drama que criei... Ultimamente, lá
no manicómio, só queriam dar-me livros optimistas, livros em prol. Os médicos
afirmavam que essas obras não me despertariam ideias sombrias... Mas eu protestei
imediatamente...
– Ah, o senhor esteve no manicómio? – perguntei; de modo tímido.
– Estive – respondeu-me ele, com naturalidade. – Não tenha medo de me ofender,
pois desde o princípio adivinhei que o senhor pensa que eu sou um louco. Não me
ofende nada... Todos têm pensado de mim a mesma coisa, já lhe disse. Estive e
lá estaria ainda se, ontem, não tenho conseguido fugir. Estava lá ia já para
oito anos. E sabe porquê? Porque, um dia, entrei numa igreja e gritei aos
crentes que se encontravam ajoelhados: «Não vos resigneis, pois o Mundo que eu
fiz é muito imperfeito e, portanto, precisa mais do vosso esforço do que da vossa
resignação. Imperfeito há de ele ser sempre e vós também; contudo, em muita
coisa podeis aperfeiçoar o Mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o
fareis; é de pé e a lutar! Quem vos fala já foi Deus e sabe porque fala assim…»
O homem olhou-me, como se, desta vez, lhe interessasse conhecer a minha
reacção. Vendo que eu continuava calado, teve um sorriso melancólico e continuou:
– O que eu fui dizer! Só as imagens dos santos ficaram impassíveis... Mas o
Cristo, no altar-mor, parecia contemplar-me meigamente, com um ar secreto de
cumplicidade. Dos fiéis, uns olhavam para mim, escandalizados, outros faziam
esforços para não se rir... Junto do altar da Senhora dos Aflitos
encontrava-se, ajoelhada, uma pobre mulher, a única que, naquela manhã, estava
ali com verdadeira unção.
Ela tinha um filho à morte e não tinha recurso algum, nem
para o médico, nem para os medicamentos – para nada. Viera ali pedir ao céu que
lhe salvasse o fi lho, pois era o céu a última esperança que lhe restava. Senti
tanta pena por essa mãe infeliz, que me aproximei do altar, estendi os braços
para a imagem de Nossa Senhora dos Aflitos e tirei-lhe do pescoço um dos muitos
cordões de oiro que os devotos lhe haviam oferecido. Entreguei-o à mulher e
disse-lhe: «Vende-o e vai a correr chamar o médico!» Mas a mulher, depois de
limpar as lágrimas, encarou-me com repugnância, como se eu fosse o próprio
diabo – e recusou o cordão. Teimei: «Despacha-te, senão o teu filho pode
morrer!» Ela continuou a recusar e a olhar-me com desprezo. Então, sempre com
piedade por ela e pelo filho, resolvi mentir: «Anda! Pega lá! Não tenhas
escrúpulos!, Eu sou o instrumento de que Nossa Senhora dos Aflitos se serviu
para te ajudar». Ela hesitou um momento. Olhou a imagem, olhou para mim, mas
não cheguei a saber se havia decidido a aceitar aquilo. A igreja enchera-se de
gritos: «É louco! É Louco! É ladrão! É ladrão! Quer roubar a Nossa Senhora dos
Aflitos!» Um polícia, que estava também ajoelhado, levantou-se, avançou para
mim, tirou-me o cordão e pô-lo, de novo, ao pescoço da imagem. Depois
ordenou-me que saísse na sua companhia... O senhor está a ver o que
aconteceu... Se, ontem, não apanho um guarda distraído e não salto o muro, não
estaria agora aqui a falar consigo...
Ofereci-lhe outro cigarro. Ele recusou-o com um gesto.
– São horas de irmo-nos embora – disse, empregando o plural, como se estivesse
certo de que eu partiria, com ele, do Senhor dos Navegantes.
Realmente, eu deixara de o temer.
Atravessámos o adro. Ao passarmos junto do local que ele me dissera haver sido
um cemitério romano, vi-o deter-se. Os seus olhos pareciam buscar, sob as
plantas silvestres, um determinado sítio. Encontrou-o, decerto, porque,
vergando a cabeça, gritou para dentro da terra:
– Cá estou! Ouves? Cá estou e vou continuar a lutar!
Ferreira de Castro
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