domingo, 3 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«Uma verdadeira mãe ou um caso de adopção canina...», por AC.

«Uma verdadeira mãe 
ou um caso de adopção canina...»
Conto de AC

494- «UMA VERDADEIRA MÃE OU UM CASO DE ADOPÇÃO CANINA…»

Quem não ouviu já contar dezenas de histórias sobre factos quase inverosímeis passados com animais que, muitas vezes, em atitudes de grande altruísmo, superam o comportamento dos humanos (infelizmente muitos destes nunca aprenderam o sentido dessa palavra com nobre significado).

Pois esta é uma dessas estórias, entre tantas outras que se contam, com a particularidade de ser verdadeira e de nos dar uma lição de grande amor maternal – que também existe entre os animais, embora muitos insistam que se trata de mero instinto, esse enlevo de sentimento que nos admira e comove.

Faz muitos anos, um meu vizinho era dono de dois cães rafeiros que lhe guardavam a casa e uma quinta de dia e de noite.

O cão chamava-lhe Jack e a cadela que tratava por Mina.

O Jack já era entrado na idade e a cadela Mina ainda quase cachorra, não se entendiam de modo algum, sendo as desavenças exacerbadas à hora a que a comida caía nos pratos; os rosnares e lances de olhar de desconfiança eram mútuos, aplicando-se-lhes, no caso em questão, o velho ditado: “o que é do meu vizinho é sempre melhor do que o que é meu”.

As meças de patas por vezes terminavam em ferozes brigas com encontrões e algumas dentadas pelo meio, apenas tendo fim com a intervenção de uma mangueira que o dono também utilizava para regar a horta.

Mas bastava a mais pequena lufada de ar fresco, transportando algumas moléculas anunciadoras do cio da Mina, estimular as ventas do Jack, aí se metamorfoseava ele no cão mais dócil e meigo…, o constante companheiro…, um “eterno” e galante namorado. A comida e a água ficavam nos pratos, pois, ao bom do Jack, as vinte e quatro horas do dia não chegavam para cumprir os rituais da corte, quanto mais para ter tempo para se alimentar.

Uma vez ainda conseguiu traduzir a sua prole em seis lindos cachorrinhos que a Mina pariu num tórrido dia de Agosto. Não cheguei a vê-los crescer, pois o dono foi dando um a um, a vizinhos e amigos de outras quintas.

Não mais o Jack se multiplicou, pois a velhice canina também não perdoa e os galanteios e ladradelas de amor ficaram por isso mesmo: uns encostos de cabeça e umas quantas tentativas frustradas de se suster nas patas traseiras sobre o dorso da Mina. E assim…, já em idade muito avançada o Jack entregou-se nas mãos do criador de todos os cães.

Apesar dos desentendimentos frequentes, a cadela Mina soube o significado da palavra solidão (canina). Era vista ora farejando os carreiros da quinta, onde ainda estava activo o cheiro do seu companheiro, ora estando deitada junto à casota que pertencera ao Jack, com olhar triste e taciturno.

Mas um belo dia, para minha surpresa, vi chegar uma carrinha que estacionou junto ao portão da quinta e de onde foi tirada uma caixa que transportava um cachorrinho com focinho de tenra idade e olhar desconfiado, tremelicando desde as orelhas, por sinal bem bonitas e vistosas, até à ponta do rabo que era branca. Simpatizei de imediato com o pequeno bicho, pensando logo de seguida para com os meus botões: -pobre cachorrinho… vais ter uma dura prova de vida na companhia da cadela Mina – sabendo eu da sua irascibilidade e mau génio para com o velho Jack. Nesse dia não vi mais o novo inquilino da quinta, pois o meu vizinho pô-lo a recato dentro da habitação, receoso, com certeza, de uma reacção perigosa da Mina. Esta, durante o resto do dia e pela noite fora, não arredou pé da porta da casa, que foi farejada com insistência e obstinação nas mais pequenas frestas onde podia encostar as narinas.

Na manhã seguinte acordei tarde, pois tinha estado entretido até altas horas, ora a ler, ora a espreitar os movimentos da cadela no pátio da casa, que se avistava nitidamente da janela do meu quarto, ainda por cima iluminado aquele por um forte luar, manifestando a Mina forte desassossego, pois cheirava a presença do cachorrinho dentro de casa. Assim, os meus primeiros movimentos, ainda debaixo do efeito do final do sono, foram para me dirigir ao posto de observação dos meus aposentos, confesso que impelido pela curiosidade de saber notícias do pequeno cachorro, do qual ainda nem sabia o nome, ou sequer se o tinha.

Digo-vos, custou-me perceber o que os meus olhos, ainda ensonados, viram: o dono da quinta já tinha substituído o nome do Jack numa das casotas de madeira, onde podia ler-se agora o nome de Faísca.

A cadela Mina lá estava deitada sob a sombra da alpendorada do pátio… e debruçado sobre a sua barriga chupava deliciado o pequeno Faísca!

AC

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