«Conto de Natal»
Aldeia de Cuango, Angola/1973
42- «CONTO DE NATAL»
Até aos dez anos, François julgava-se belga. Cidadão do
Congo Belga. Isso lhe disseram os pais até desaparecerem naquela voragem maluca
que foi a independência da imensa colónia que a Bélgica mantinha ao norte de
Angola. Depois da ausência dos pais, mortos na turbulenta guerra civil que se
seguiu à independência desse território, passou a chamar-se Francisco. E quem
lhe deu o novo nome foi o velho padre Henrique, responsável pela Missão
Católica que exercia uma actividade evangelizadora na aldeia de Cuango, situada
mesmo na linha que separava Angola do antigo Congo Belga. O padre Henrique, seu
padrinho, a quem todos os dias beijava a mão, era um grande homem: não só
grande em tamanho (tinha quase dois metros), e umas mãos mais próprias para
manejar a enxada do que para dar a comunhão. Pois esse padre, seu padrinho,
repetimos, ensinara-lhe a nova língua e as aritméticas rudimentares, não
grandes equações, está bem de ver, mas o suficiente para mais tarde se
desembaraçar. Ensinara-lhe também a respeitar o Natal. A data mais importante
da Humanidade, segundo as palavras do próprio padre. E assim se foi criando o
Francisco no interior da missão, ajudando à missa, fabricando as hóstias e
cavando a horta, até que chegou a altura de ter documentos que permitissem a sua
identificação.
«O Padre Henrique de volta ao Cuango»
Banda Desenhada/ O Pároco, por JPGalhardas
Nome: Chico Francisco
Filho de: (esta linha ficou em branco)
Etnia: Negra – Nativo da Província
Morada: Missão Católica de Cuango
Eram estes os elementos que constavam da caderneta que mais
tarde o padrinho lhe entregara, com a recomendação de não a perder, a fim de
evitar chatices futuras. Assim mesmo, com estas palavras.
«Chico Francisco»
Tocador de quissange, por Neves e Sousa
Os problemas chegaram com a morte do padre padrinho. Como
não se entendeu com o substituto do velho padre, um belo dia emalou as imbambas
e ala! a caminho de Luanda – sem dar cavaco a ninguém. Foi engrossar a falange
de negros que, numa semi clandestinidade, davam vida à cintura de musseques que
rodeavam a grande cidade. Ficou na barraca do amigo Kapata Diogo, antigo
companheiro na Missão, situada muito para lá daquilo a que chamavam ‘Zona
Industrial do Cazenga’, a duas horas bem andadas da cidade do asfalto. A breve
prazo se fez sócio do negócio do amigo: comércio de panos do Congo. Comércio
ambulante, comércio pobre, de pequena valia, como se depreende. Mas não querem lá
ver que o negócio nem corria mal! Dava para comer uma vez por dia, pelo menos,
e quando calhava melhor, até sobravam uns angolares para beber umas ‘Nocais’
nos merengues do musseque, em companhia de uma negra linda que já trazia
fisgada, enquanto os rapazes do ‘Ngola Ritmos’ animavam a farra.
«Os rapazes do Ngola Ritmos»
Ngola Ritmos/ Anos 70
Importa aqui dar uma explicação do que consistia o negócio
dos dois amigos: compravam a mercadoria por atacado nos ‘Grandes Armazéns do
Gajandumbo’. Depois revendiam-na pelas ruas da cidade. Ora os panos do Congo,
uns lençóis muito compridos e extremamente coloridos, mais não eram que as
capulanas, vestuário típico das mulheres negras de Luanda, assim como de outras
regiões de África. Enrolavam-se as mulheres nesses longos panos, logo abaixo
das axilas, e deixavam-nos cair até aos pés. Dois ou três alfinetes de ama e
uns fios de missangas, eram os únicos acessórios necessários para completar a
toilette. O negócio não rendeu muito até as mulheres brancas da cidade pegarem
na moda. Mas quando estas aprenderam a moldar o corpo com os panos, aí sim, o
negócio floresceu.
«Mulher de Luanda com Capulana»
Bessangana de Luanda, por Neves e Sousa
Ora o nosso Chico Francisco tinha como ponto de venda mais
frequente a base da peanha da estátua no Largo da Maria da Fonte, ali junto à
entrada do Mercado de Kinaxixi. A qualquer mulher que se aproximasse, negra,
mulata ou branca, tal como nos selos de povoamento, perguntava: “Madame, está
interessada nesta mercadoria recém chegada do Congo?”
Depois, se sim sim, se não não. Como é normal em qualquer negócio.
«Maria da Fonte, Monumento no Largo
do Kinaxixi, em Luanda»
Monumento aos Combatentes da
Grande Guerra/ Inaugurado em 1937
Até que um dia, vésperas de Natal, mal tinha acabado de
expor a mercadoria, e ainda cansado da longa maratona de duas horas de
caminhada, travou o seguinte diálogo com uma potencial compradora:
Chico Francisco – “Panos lindos, Madame. Com motivos
natalícios. Está interessada?”
Compradora – “Recupera lá o fôlego. Donde vens tu, rapaz, para estares assim
exausto?”
Chico Francisco – “Tira a cueca, Madame!”
«La Madame»
Banda Desenhada, por JPGalhardas
Tal era o descoco do moleque! Chamada a polícia, que estava
logo ali à mão, o Chico foi levado para a esquadra do Mercado. De nada valeu a
apresentação da caderneta de identificação. E mais difícil ainda foi explicar a
discrepância entre a morada que nela constava e a sua presença em Luanda. Aí,
levou uns tabefes que lhe rebentaram os lábios, nada de muito grave levando em
conta o que era habitual.
Com que então “tira a cueca”! Falar assim a uma senhora....
a quem se contaria uma destas!? E foi quando o rapaz se esforçava por dar
explicações, que entrou um polícia mais velho, experiente, conhecedor dos
meandros da cidade, sabendo das dificuldades de vida daquela molecada toda, e
inteirando-se da situação, reparando no crucifixo que o Chico trazia pendurado
ao pescoço, disse para os colegas: “Soltem o gaiato. Hoje é véspera de Natal,
lembrem-se! O ‘tira a cueca’ é um musseque que fica lá para o cu de judas.”
E era mesmo. Tal como o Chico Francisco já se fartara de repetir. E nessa noite, Noite do Menino, enquanto o amigo Kapata Diogo comia o bacalhau, o Chico bebia a ‘Nocal’ por uma palhinha.
Orson W. Calabrese
1 comentário:
Isso passou-se no Cuango (onde eu estive)? Em que ano?
AMP
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