quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

OUTROS CONTOS

«Conto de Natal», por Orson W. Calabrese.

«Conto de Natal»
Aldeia de Cuango, Angola/1973

42- «CONTO DE NATAL»

Até aos dez anos, François julgava-se belga. Cidadão do Congo Belga. Isso lhe disseram os pais até desaparecerem naquela voragem maluca que foi a independência da imensa colónia que a Bélgica mantinha ao norte de Angola. Depois da ausência dos pais, mortos na turbulenta guerra civil que se seguiu à independência desse território, passou a chamar-se Francisco. E quem lhe deu o novo nome foi o velho padre Henrique, responsável pela Missão Católica que exercia uma actividade evangelizadora na aldeia de Cuango, situada mesmo na linha que separava Angola do antigo Congo Belga. O padre Henrique, seu padrinho, a quem todos os dias beijava a mão, era um grande homem: não só grande em tamanho (tinha quase dois metros), e umas mãos mais próprias para manejar a enxada do que para dar a comunhão. Pois esse padre, seu padrinho, repetimos, ensinara-lhe a nova língua e as aritméticas rudimentares, não grandes equações, está bem de ver, mas o suficiente para mais tarde se desembaraçar. Ensinara-lhe também a respeitar o Natal. A data mais importante da Humanidade, segundo as palavras do próprio padre. E assim se foi criando o Francisco no interior da missão, ajudando à missa, fabricando as hóstias e cavando a horta, até que chegou a altura de ter documentos que permitissem a sua identificação.

«O Padre Henrique de volta ao Cuango»
Banda Desenhada/ O Pároco, por JPGalhardas

Nome: Chico Francisco
Filho de: (esta linha ficou em branco)
Etnia: Negra – Nativo da Província
Morada: Missão Católica de Cuango

Eram estes os elementos que constavam da caderneta que mais tarde o padrinho lhe entregara, com a recomendação de não a perder, a fim de evitar chatices futuras. Assim mesmo, com estas palavras.

«Chico Francisco»
Tocador de quissange, por Neves e Sousa

Os problemas chegaram com a morte do padre padrinho. Como não se entendeu com o substituto do velho padre, um belo dia emalou as imbambas e ala! a caminho de Luanda – sem dar cavaco a ninguém. Foi engrossar a falange de negros que, numa semi clandestinidade, davam vida à cintura de musseques que rodeavam a grande cidade. Ficou na barraca do amigo Kapata Diogo, antigo companheiro na Missão, situada muito para lá daquilo a que chamavam ‘Zona Industrial do Cazenga’, a duas horas bem andadas da cidade do asfalto. A breve prazo se fez sócio do negócio do amigo: comércio de panos do Congo. Comércio ambulante, comércio pobre, de pequena valia, como se depreende. Mas não querem lá ver que o negócio nem corria mal! Dava para comer uma vez por dia, pelo menos, e quando calhava melhor, até sobravam uns angolares para beber umas ‘Nocais’ nos merengues do musseque, em companhia de uma negra linda que já trazia fisgada, enquanto os rapazes do ‘Ngola Ritmos’ animavam a farra.

«Os rapazes do Ngola Ritmos»
Ngola Ritmos/ Anos 70

Importa aqui dar uma explicação do que consistia o negócio dos dois amigos: compravam a mercadoria por atacado nos ‘Grandes Armazéns do Gajandumbo’. Depois revendiam-na pelas ruas da cidade. Ora os panos do Congo, uns lençóis muito compridos e extremamente coloridos, mais não eram que as capulanas, vestuário típico das mulheres negras de Luanda, assim como de outras regiões de África. Enrolavam-se as mulheres nesses longos panos, logo abaixo das axilas, e deixavam-nos cair até aos pés. Dois ou três alfinetes de ama e uns fios de missangas, eram os únicos acessórios necessários para completar a toilette. O negócio não rendeu muito até as mulheres brancas da cidade pegarem na moda. Mas quando estas aprenderam a moldar o corpo com os panos, aí sim, o negócio floresceu.

«Mulher de Luanda com Capulana»
Bessangana de Luanda, por Neves e Sousa

Ora o nosso Chico Francisco tinha como ponto de venda mais frequente a base da peanha da estátua no Largo da Maria da Fonte, ali junto à entrada do Mercado de Kinaxixi. A qualquer mulher que se aproximasse, negra, mulata ou branca, tal como nos selos de povoamento, perguntava: “Madame, está interessada nesta mercadoria recém chegada do Congo?”
Depois, se sim sim, se não não. Como é normal em qualquer negócio.

«Maria da Fonte, Monumento no Largo 
do Kinaxixi, em Luanda»
Monumento aos Combatentes da 
Grande Guerra/ Inaugurado em 1937

Até que um dia, vésperas de Natal, mal tinha acabado de expor a mercadoria, e ainda cansado da longa maratona de duas horas de caminhada, travou o seguinte diálogo com uma potencial compradora:

Chico Francisco – “Panos lindos, Madame. Com motivos natalícios. Está interessada?”
Compradora – “Recupera lá o fôlego. Donde vens tu, rapaz, para estares assim exausto?”
Chico Francisco – “Tira a cueca, Madame!”

«La Madame»
Banda Desenhada, por JPGalhardas

Tal era o descoco do moleque! Chamada a polícia, que estava logo ali à mão, o Chico foi levado para a esquadra do Mercado. De nada valeu a apresentação da caderneta de identificação. E mais difícil ainda foi explicar a discrepância entre a morada que nela constava e a sua presença em Luanda. Aí, levou uns tabefes que lhe rebentaram os lábios, nada de muito grave levando em conta o que era habitual.

Com que então “tira a cueca”! Falar assim a uma senhora.... a quem se contaria uma destas!? E foi quando o rapaz se esforçava por dar explicações, que entrou um polícia mais velho, experiente, conhecedor dos meandros da cidade, sabendo das dificuldades de vida daquela molecada toda, e inteirando-se da situação, reparando no crucifixo que o Chico trazia pendurado ao pescoço, disse para os colegas: “Soltem o gaiato. Hoje é véspera de Natal, lembrem-se! O ‘tira a cueca’ é um musseque que fica lá para o cu de judas.”

«Cerveja Nocal por uma Palhinha na Noite
 do Menino Chico Francisco»
Cocktail, por JPGalhardas

E era mesmo. Tal como o Chico Francisco já se fartara de repetir. E nessa noite, Noite do Menino, enquanto o amigo Kapata Diogo comia o bacalhau, o Chico bebia a ‘Nocal’ por uma palhinha.

Orson W. Calabrese

1 comentário:

Anónimo disse...

Isso passou-se no Cuango (onde eu estive)? Em que ano?
AMP