«Cinco Minutos», por José de Alencar.
Pode ler por aqui- «OUTROS
CONTOS», I capítulo de «Cinco Minutos», do escritor brasileiro José de Alencar. Boa leitura, amigos leitores!
Poet'anarquista
«Uma Velha Grotesca»
Quinten Metsys
43- «CINCO MINUTOS»
II
QUINZE dias se passaram depois da minha aventura.
Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagâncias
que fiz.
Fui todos os dias a Andaraí no ônibus das sete horas, para
ver se encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros se a
conheciam e não obtive a menor informação.
Estava a braços com uma paixão, minha prima, e com uma
paixão de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas por
hora.
Quando saía, não via ao longe um vestido de seda preta e um
chapéu de palha que não lhe desse caça, até fazê-lo chegar à abordagem.
No fim descobria alguma velha ou alguma costureira
desjeitosa e continuava tristemente o meu caminho, atrás dessa sombra
impalpável, que eu procurava havia quinze longos dias, isto é, um século para o
pensamento de um amante.
Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem
que ama uma mulher e que não conhece a mulher que ama.
Recostei-me a uma porta e dai via passar diante de mim uma
miríade brilhante e esplêndida, pedindo a todos aqueles rostos indiferentes um
olhar, um sorriso, que me desse a conhecer aquela que eu procurava.
Assim preocupado, quase não dava fé do que se passava junto
de mim, quando senti um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu
coração, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou:
— Non ti scordar di me!…
Voltei-me.
Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas
vi uma velha que passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanando-se com um
leque.
— Será ela, meu Deus? pensei horrorizado
E, por mais que fizesse, os meus olhos não se podiam
destacar daquele rosto cheio de rugas.
A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que
devia atrair a simpatia; mas naquele momento essa beleza moral, que iluminava
aquela fisionomia inteligente, pareceu-me horrível e até repugnante.
Amar quinze dias uma sombra, sonhá-la bela como um anjo, e
por fim encontrar uma velha de cabelos brancos, uma velha coquette e
namoradeira!
Não, era impossível! Naturalmente a minha desconhecida tinha
fugido antes que eu tivesse tempo de vê-la.
Essa esperança consolou-me; mas durou apenas um segundo.
A velha falou e na sua voz eu reconheci, apesar de tudo,
apesar de mim mesmo, o timbre doce e aveludado que ouvira duas vezes.
Em face da evidência não havia mais que duvidar. Eu tinha
amado uma velha, tinha beijado a sua mão enrugada com delírio, tinha vivido
quinze dias de sua lembrança.
Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem
enlouqueci, mas fiquei com um tal tédio e um aborrecimento de mim mesmo que não
posso exprimir.
Que peripécias, que lances, porém, não me reservava ainda
esse drama, tão simples e obscuro!
Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a
sua voz; foi só passado o primeiro espanto que percebi o que dizia.
— Ela não gosta de bailes.
— Pois admira, replicou o cavalheiro; na sua idade!
— Que quer! não acha prazer nestas festas ruidosas e nisto
mostra bem que é minha filha.
A velha tinha uma filha e isto podia explicar a semelhança
extraordinária da voz. Agarrei-me a esta sombra, como um homem que caminha no
escuro.
Resolvi-me a seguir a velha toda a noite, até que ela se
encontrasse com sua filha: desde este momento era o meu fanal, a minha estrela
polar.
A senhora e o seu cavalheiro entraram na saleta da escada.
Separado dela um instante pela multidão, ia segui-la.
Nisto ouço uma voz alegre dizer da saleta:
— Vamos, mamã!
Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um
vestido preto, envolto num largo burnous de seda branca, que desapareceu
ligeiramente na escada.
Atravessei a saleta tão depressa como me permitiu a
multidão, e, pisando calos, dando encontrões à direita e à esquerda, cheguei
enfim à porta da saída,
O meu vestido preto sumiu-se pela portinhola de um cupê, que
partiu a trote largo.
Voltei ao baile desanimado; a minha única esperança era a
velha; por ela podia tomar informações, saber quem era a minha desconhecida,
indagar o seu nome e a sua morada, acabar enfim com este enigma, que me matava
de emoções violentas e contrárias.
Indaguei dela.
Mas como era possível designar uma velha da qual eu só sabia
pouco mais ou menos a idade?
Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não
tinham olhado para elas.
Retirei-me triste e abatido, como um homem que se vê em luta
contra o impossível.
De duas vezes que a minha visão me tinha aparecido, só me
restavam uma lembrança, um perfume e uma palavra!
Nem sequer um nome!
A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase
do Trovador, tão cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda
uma história.
Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu
não fosse ao teatro, ao menos para ter o prazer de ouvi-la repetir.
A princípio, por uma intuição natural, julguei que ela
devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia também ir
sempre ao teatro.
O meu binóculo examinava todos os camarotes com uma atenção
meticulosa; via moças bonitas ou feias, mas nenhuma delas me fazia palpitar o
coração.
Entrando uma vez no teatro e passando a minha revista
costumada, descobri finalmente na terceira ordem sua mãe, a minha estrela, o
fio de Ariadne que me podia guiar neste labirinto de dúvidas.
A velha estava só, na frente do camarote, e de vez em quando
voltava-se para trocar uma palavra com alguém sentado no fundo.
Senti uma alegria inefável.
O camarote próximo estava vazio; perdi quase todo o
espetáculo a procurar o cambista incumbido de vendê-lo. Por fim achei-o e subi
de um pulo as três escadas.
O coração queria saltar-me quando abri a porta do camarote e
entrei.
Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapeuzinho de
palha com um véu preto rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa a
quem pertencia.
Mas eu tinha adivinhado que era ela; e sentia um prazer
indefinível em olhar aquelas rendas e fitas, que me impediam de conhecê-la, mas
que ao menos lhe pertenciam.
Uma das fitas do chapéu tinha caído do lado do meu camarote,
e, em risco de ser visto, não pude suster-me e beijei-a a furto.
Representava-se a Traviata e era o último ato; o espetáculo
ia acabar, e eu ficaria no mesmo estado de incerteza.
Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cair o
binóculo, fiz um barulho insuportável, para ver se ela voltava o rosto.
A plateia pediu silêncio; todos os olhos procuraram conhecer
a causa do rumor; porém ela não se moveu; com a cabeça meio inclinada sobre a
coluna, em uma lânguida inflexão, parecia toda entregue ao encanto da música.
Tomei um partido.
Encostei-me à mesma coluna e, em voz baixa, balbuciei estas
palavras:
— Não me esqueço!
Estremeceu e, baixando rapidamente o véu, conchegou ainda
mais o largo burnous de cetim branco.
Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me; esperei muito
tempo, e debalde.
Tive então um movimento de despeito e quase de raiva; depois
de um mês que eu amava sem esperança, que eu guardava a maior fidelidade à sua
sombra, ela me recebia friamente.
Revoltei-me.
— Compreendo agora, disse eu em voz baixa e como falando a
um amigo que estivesse a meu lado, compreendo porque ela me foge, por que
conserva esse mistério; tudo isto não passa de uma zombaria cruel, de uma
comédia, em que eu faço o papel de amante ridículo. Realmente é uma lembrança
engenhosa! Lançar em um coração o germe de um amor profundo; alimentá-lo de
tempos a tempos com uma palavra, excitar a imaginação pelo mistério; e depois,
quando esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma ilusão, passear pelo
salão a sua figura triste e abatida, mostrá-lo a suas amigas como uma vítima
imolada aos seus caprichos e escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho da
mais vaidosa mulher deve ficar satisfeito!
Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o
fel que tinha no coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa
linda ária final da Traviata, interrompida por ligeiros acessos de uma tosse
seca.
Ela tinha curvado a cabeça e não sei se ouvia o que eu lhe
dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espáduas se agitavam
com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento de
impaciência.
O espetáculo terminou, as pessoas do camarote saíram e ela,
levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompanhou-as lentamente.
Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma coisa,
tornou a entrar no camarote e estendeu-me a mão.
— Não saberá nunca o que me fez sofrer, disse-me com a voz
trêmula.
Não pude ver-lhe o rosto; fugiu, deixando-me o seu lenço
impregnado desse mesmo perfume de sândalo e todo molhado de lágrimas ainda quentes.
Quis segui-la; mas ela fez um gesto tão suplicante que não
tive ânimo de desobedecer-lhe.
Estava como dantes; não a conhecia, não sabia nada a seu
respeito; porém ao menos possuía alguma coisa dela; o seu lenço era para mim
uma relíquia sagrada.
Mas as lágrimas? Aquele sofrimento de que ela falava?
O que queria dizer tudo isto?
Não compreendia; se eu tinha sido injusto, era uma razão
para não continuar a esconder-se de mim. Que queria dizer este mistério, que
parecia obrigada a conservar?
Todas estas perguntas e as conjeturas a que elas davam lugar
não me deixaram dormir.
Passei uma noite de vigília a fazer suposições, cada qual
mais desarrazoada.
José de Alencar
(continua...)
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