«Segunda ou Terça-Feira»
36- «SEGUNDA OU TERÇA-FEIRA»
Preguiçosa e indiferente, vibrando facilmente o espaço com
suas asas, conhecendo seu rumo, a garça sobrevoa a igreja por baixo do céu.
Branca e distante, absorta em si mesma, percorre e volta a percorrer o céu,
avança e continua. Um lago? Apaguem suas margens! Uma montanha? Ah, perfeito –
o sol doura-lhe as margens. Lá ele se põe. Samambaias, ou penas brancas para
sempre e sempre.
Desejando a verdade, esperando-a, laboriosamente vertendo
algumas palavras, para sempre desejando – (um grito ecoa para a esquerda, outro
para a direita. Carros arrancam divergentes. Ônibus conglomeram-se em conflito)
para sempre desejando – (com doze batidas eminentes, o relógio assegura ser
meio-dia; a luz irradia tons dourados; crianças fervilham) – para sempre
desejando a verdade. O domo é vermelho; moedas pendem das árvores; a fumaça
arrasta-se das chaminés; ladram, berram, gritam “Vende-se ferro!” – e a
verdade?
Radiando para um ponto, pés de homens e pés de mulheres,
negros e incrustados a ouro – (Este tempo nublado – Açúcar? Não, obrigado – a
comunidade do futuro) – a chama dardejando e enrubescendo o aposento, exceto as
figuras negras com seus olhos brilhantes, enquanto fora um caminhão descarrega,
Miss Fulana toma chá à escrivaninha e vidraças conservam casacos de pele.
Trêmula, leve-folha, vagueando nos cantos, soprada além das
rodas, salpicada de prata, em casa ou fora de casa, colhida, dissipada,
desperdiçada em tons distintos, varrida para cima, para baixo, arrancada,
arruinada, amontoada – e a verdade?
Agora recolhida pela lareira, no quadrado branco de mármore.
Das profundezas do marfim ascendem palavras que vertem seu negrume. Caído o
livro; na chama, no fumo, em momentâneas centelhas – ou agora viajando, o
quadrado de mármore pendente, minaretes abaixo e mares indianos, enquanto o
espaço investe azul e estrelas cintilam – verdade? Ou agora, consciente da
realidade?
Preguiçosa e indiferente, a garça retoma; o céu vela as
estrelas; e então as revela.
Virginia Woolf
1 comentário:
Confesso que Virgínia Woolf, durante muitos anos, não foi uma escritora que despertasse o meu interesse. Li alguns dos seus ensaios, nenhum dos romances, e acabei classificando-a entre os modernistas do princípio do século XX. Ora como os modernistas (nem sequer os portugueses - e que me perdoem aqueles que os admiram -, me interessaram muito, os seus livros lá foram ficando esquecidos nas minhas estantes.
Mas como sou um cinéfilo inveterado, o meu interesse por esta escritora chegou através do cinema.
De forma fortuita.
Foi através de Nicole Kidman, aquela actriz australiana que tem feito carreira na América. Ao ver o filme "Horas", em que esta actriz desempenha, espantosamente, o papel de Virgínia Woolf, fiquei fascinado pela personagem e lá fui em busca dos livros antigos.
Em boa hora o fiz.
E logo de seguida comprei os romances. Apenas dois, por enquanto: "As Ondas" e "Orlando".
Entretanto fui inteirando-me da vida da mulher. Parece que viveu em depressão constante. Uma vida depressiva que deu grandes obras à literatura.
E hoje sinto-me mal por me ter deixado levar pelos preconceitos quando, pela primeira vez, acedi à sua obra.
Aqui fica um grande "mea culpa".
Cumprimentos
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