13 de Dezembro de 1960, efeméride de nascimento do escritor angolano José Eduardo Agualusa. Para comemorar esta data publica-se conto de sua autoria, com o título «Borges no Inferno». Boa leitura!
Poet'anarquista
«Borges no Inferno»
José Eduardo Agualusa
44- «BORGES NO INFERNO»
Jorge Luis Borges soube que tinha morrido quando, tendo
fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo
sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito
intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas
pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas
sombras verdes. Estava estendido de costas numa plantação de bananeiras.
Aquilo deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre
imaginara o paraíso como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável
de corredores, escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos
corredores, e todos eles com livros empilhados até ao tecto.
Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se
desconfortável dentro do próprio corpo subitamente rejuvenescido (quando
morremos reencarnamos jovens e Borges não se recordava de como isso era).
Caminhou devagar entre as bananeiras.
Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido, ou seja, alguém de
quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso
seria alguém um pouco menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas
as coisas.
A plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida
começou a atormentá-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso, mas no
inferno. Para onde quer que olhasse só avistava as largas folhas verdes,
os pesados cachos amarelos, e sobre essa idêntica paisagem um céu
imensamente azul. Borges lamentava a ausência de livros. Se ali ao menos
existissem tigres – tigres metafóricos, claro, com um alfabeto secreto
gravado nas manchas do dorso –, se houvesse algures um labirinto, ou uma
esquina cor-de-rosa (bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava
bananeiras, bananeiras, ainda bananeiras.
Bananeiras a perder de vista.
Percorreu sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita
plantação. Era como se
andasse em círculos. Era como se não andasse. Fazia-lhe falta a cegueira. Cego,
o que não via tinha mais cores do que aquilo – além do mistério, claro.
Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre
bananeiras?
Borges não gostava da América Latina. A Argentina, como se
sabe, é um país europeu (ou quase), que por desgraça faz fronteira com o
Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges, aquele quase sempre foi um
espinho cravado no fundo da alma. Isso e a vizinhança. Os índios ele ainda
tolerava. Tinham fornecido bons motivos para a literatura e além disso
estavam mortos. O pior eram os negros e os mestiços, gente capaz de
transformar o grande drama da vida – da vida, meu Deus! – numa
festa ruidosa. Borges sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos
gregos (gostaria de os ter lido em grego). Gostava do silêncio poderoso
das velhas catedrais.
Foi então que a viu. À sua frente uma mulher flutuava,
pálida e nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado
para o sol e as mãos pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas isso
para Borges não tinha grande importância (a especialidade dele sempre
foram os tigres). Horrorizado compreendeu o equívoco. Deus confundira-o
com outro escritor latino-americano. Aquele paraíso fora construído,
só podia ter sido construído, a pensar em Gabriel García Marquez.
Jorge Luis Borges sentou-se sobre a terra húmida. Levantou o
braço, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em Gabriel García
Marquez e voltou a experimentar o intolerável tormento da inveja. Um dia o
escritor colombiano fechará os olhos, para melhor escutar o rumor
longínquo da noite, e quando os reabrir estará deitado de costas sobre o
lajedo frio de uma biblioteca. Caminhará pelos corredores, subirá
escadas, atravessará outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores,
e em todos eles encontrará livros, milhares, milhões de livros. Um
labirinto infinito, forrado de estantes até ao tecto, e nessas estantes
todos os livros escritos e por escrever, todas as combinações possíveis de
palavras em todas as línguas dos homens.
Jorge Luis Borges descascou outra banana e nesse momento um
sorriso – ou algo como um sorriso – iluminou-lhe o rosto. Começava a
adivinhar naquele equívoco cruel um inesperado sentido: sendo certo que o
paraíso do outro era agora o inferno dele, então o paraíso dele haveria de
ser, certamente, o inferno do outro. Borges terminou de descascar a banana e
comeu-a. Era boa. Era um bom inferno, aquele.
José Eduardo Agualusa
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