«Natal Chinês»
Pai Natal Chinês
45- «NATAL CHINÊS»
A senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava
vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as
laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar,
embevecida, o presépio do convento. Encontrava-a por fim à mesa.
A senhora Tung viajava
todos os anos da Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o
nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou.
Nesses dias, com as
meninas em férias, o refeitório do colégio parecia maior e mais desconfortável:
só eu e Miss Lu nos sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença
da senhora Tung, que noutra ocasião passaria talvez despercebida (estirada a
sala entre pátios de cimento e plantas verdes), se tornar nessa altura notável.
Baixa, seca de carnes, de
olhos atenciosos, pensativos, a senhora Tung sorria constantemente, falava
inglês, gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As criadas cortejavam-na nos
corredores, preparavam-lhe pratos especiais, levavam-lhe chá ao quarto. Além de
ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica e distribuía moedas de prata a todo
o pessoal na noite de festa.
Nessa noite
assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não lhes permitia comer
connosco): a directora, a subdirectora e a mestra dos estudos. E muito empertigada,
segurando com ambas as mãos um tabuleiro de laca coberto com um pano de seda, a
senhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando cerimoniosamente o
presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora. Eram bolos de
farinha fina de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de vermelho, de sapatos
bordados e ganchos de jade no cabelo, a senhora Tung, quando a superiora
colocava o tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão.
Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas
espreitavam, curiosas.
Nem no primeiro,
nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era
cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se
nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos
frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o
baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava,
indicando a irmã Chen-Mou. A filha... a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã
pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a
antigas devoções... Todavia, vestira-se de gala para a festividade da
meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma
transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse.
Com um sorriso meio complacente meio
contrariado, a irmã Chen-Mou desconversava, passando a bandeja dos bolos à
superiora, que separava uns tantos para o convento. Os restantes comê-los-íamos
nós, ao fim da Missa do Galo, com chocolate quente.
O chocolate era a
esperada surpresa da directora. A senhora Tung chamava-lhe, em ar de
gracejo, «chá de Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três
freiras ao refeitório do colégio para trocarem connosco o beijo da paz e nos
oferecerem a tigela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de
mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-franciscana,
sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante,
como quem cumprisse um dever, e saía atrás delas.
Ficávamos, assim, a
senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À luz das velas olorosas do centro
de mesa, os seus olhos eram dois riscos tremulantes. Sorríamos.
Finalmente, o reposteiro ao fundo da sala apartava-se. Uma das
criadas entrava, silenciosa. Servia-se vinho de arroz.
Creio que o vinho de
arroz figurava entre as bebidas proibidas no colégio e que chegava ali por
portas travessas. O certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar os
bolos de sésamo, no grande e deserto refeitório, na noite de Natal.
O vinho de arroz
queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas aos olhos. Quanto à senhora
Tung, saboreava-o devagar, molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de
Paris», bebia dois cálices.
Entretanto, Aldegundes, a
criada macaense mais antiga do colégio, aparecia com as especialidades da
terra: aluares, fartes e coscorões, dizendo que aluá era o
colchão do Minino Jesus, farte almofada, coscorão lençol. E
eu traduzia em inglês para a senhora Tung, que achava isto enternecedor e gratificava a
velha generosamente.
Quando por fim
atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob uma lua branca, espantada,
anunciadora do Inverno para a madrugada, a senhora Tung abria-se em confidências.
A menina sabia... ― a
«menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que ela
continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena
divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril
durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina
quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto
deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em
que a deusa a escutara.
Parava a meio do largo átrio enluarado,
de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe
lentas e soltas, como se falasse sozinha.
... E aquele mistério da
virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo... Não se lia no
Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois
serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo
diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de
vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres,
sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e
exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria.
Retomávamos a marcha em direcção aos
nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem
ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao
tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta.
Já em casa, convidava-me a ir ver o
seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda,
entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada,
sapatinhos de veludo preto, feições chinesas.
Depois, timidamente, a senhora
Tung abria a gaveta... e surgia a deusa.
O Menino Jesus era de marfim. A
Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura,
trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.
Os olhos da senhora Tung
atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras
prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo.
A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda,
por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha ?
Eu já sentia frio, apesar
da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no
entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas.
Despedíamo-nos. Eu sempre me
apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não
havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas
nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que
a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me
acreditaria.
Maria Ondina Braga
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