«O Capitão do Normandy»
O Capitão, por JPGalhardas
38- «O CAPITÃO DO NORMANDY»
Na noite de 17 de março de 1870, o capitão Harvey fazia sua
travessia habitual entre Southampton e Guernesey. Um nevoeiro cobria o mar. O
capitão Harvey estava de pé no passadiço do navio a vapor, e manobrava
cuidadosamente por causa da noite e da bruma. Os passageiros dormiam.
O Normandy era um navio muito grande; talvez o mais bonito
dos que faziam a travessia da Mancha: seiscentas toneladas, duzentos e vinte
pés ingleses de comprimento, vinte e cinco de largura; era “jovem”, como dizem
os marinheiros: não tinha sete anos. Fora construído em 1863.
O nevoeiro aumentava, tinha-se saído do rio de Southampton,
estava-se em pleno mar, cerca de quinze milhas além das Agulhas. 0 paquete
avançava devagar. Eram quatro horas da manhã.
A escuridão era absoluta, uma espécie de teto baixo rodeava
o navio a vapor; a custo avistava-se a ponta dos mastros.
Nada tão terrível quanto esses navios cegos; que avançam
dentro da noite.
De súbito surge um negrume entre a bruma, fantasma e
montanha, um promontório de sombra correndo na espuma e varando as trevas. Era
o Mary, grande navio a vapor de hélice que vinha de Odessa e se
dirigia para Grimsby com um carregamento de quinhentas toneladas de trigo;
velocidade enorme, peso imenso. O Mary avançava direto sobre o
Normandy.
Nenhum recurso havia para evitar o choque, tamanha a rapidez
com que surgem no nevoeiro esses espectros de navios. São encontros sem
aproximação. Antes de acabar de vê-lo, a pessoa está morta. O Mary,
correndo a todo vapor, colheu o Normandy perpendicularmente ao costado e
arrebentou-o.
Ele próprio, avariado com o choque, parou.
Havia no Normandy vinte e oito homens de tripulação, uma
criada… e trinta e dois passageiros, dos quais doze eram mulheres.
O abalo foi violentíssimo. Num momento todos estavam no
tombadilho: homens, mulheres, crianças, semi-nus, correndo, gritando, chorando.
A água entrava furiosa. A fornalha das máquinas, alcançada pela inundação,
arquejava. Os, salva-vidas faltavam.
O capitão Harvey, de pé no passadiço do comando, bradou:
“Silêncio para todos, e atenção! Botes ao mar. As mulheres primeiro, os
passageiros depois. Em seguida a tripulação. Há sessenta pessoas para salvar”.
Eram sessenta e uma, porém ele esquecia-se de si próprio.
Soltaram as embarcações. Todos correram para elas. Esse
açodamento podia fazer os botes virarem. Ockleford, o imediato, e os três
contra-mestres, contiveram aquela multidão desvairada. Dormir, e de súbito,
imediatamente, morrer, é pavoroso.
Enquanto isso, acima dos gritos e do tumulto, ouvia-se a voz
grave do capitão, e este curto diálogo ocorria nas trevas: “Maquinista Locks? –
Capitão. – Como está a fornalha? – Submersa. – O fogo? – Apagado. – A máquina?
– Morta.”
O capitão gritou: “Imediato Ockleford?” O imediato
respondeu: “Presente”. O capitão prosseguiu: “De quantos minutos dispomos? –
Vinte. – É o bastante, disse o capitão. Que todos embarquem, cada qual por sua
vez”.
“
Imediato Ockleford, está com suas pistolas? – Sim, capitão.
– Queime os miolos de qualquer homem que quiser passar antes de uma mulher”.
Todos se calaram. Ninguém resistiu; a multidão sentia acima
de si própria aquela grande alma.
O Mary, por seu lado, descera seus botes e acudia em
socorro daquele naufrágio que era obra sua.
O salvamento operou-se com ordem e quase sem luta. Havia,
como sempre, tristes egoísmos; também houve dedicações patéticas.
Harvey, impassível em seu posto de comandante, ordenava,
dominava, dirigia, ocupava-se com tudo e com todos, governava calmamente aquela
agonia e parecia dar ordens à própria catástrofe. Dir-se-ia que o naufrágio lhe
prestava obediência.
Em determinado instante ele gritou: “Salvem Clemente!”
Clemente era o grumete. Uma criança.
O navio diminuía vagarosamente na água profunda. Apressava-se
o mais possível o vaivém das embarcações entre o Normandy e o Mary.
“Depressa!” gritava o capitão.
No vigésimo minuto o navio a vapor soçobrou.
A proa afundou primeiro, depois a popa.
O capitão Harvey, de pé no passadiço, não fez um gesto, não
disse uma palavra, entrou imóvel no abismo. Viu-se, através da neblina
sinistra, aquela estátua negra mergulhar no oceano. Assim acabou o capitão
Harvey.
Nenhum marinheiro da Mancha o igualava. Depois de se ter
imposto a vida toda o dever de ser um homem, ele usou, ao morrer, do direito de
ser um herói.
Victor Hugo
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