«Cinco Minutos», por José de Alencar.
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Poet'anarquista
«Cinco Minutos»
Dança no Moulin Rouge, por Toulouse-Lautrec
43- «CINCO MINUTOS»
VI
EIS o que ela me dizia:
“Devo-te uma explicação, meu amigo.
“Esta explicação é a história da minha vida, breve história,
da qual escreveste a mais bela página.
“Cinco meses antes do nosso primeiro encontro completava eu
os meus dezasseis anos, a vida começava a sorrir-me.
“A educação rigorosa que me dera minha mãe, me conservara
menina até àquela idade, e foi só quando ela julgou dever correr o véu que
ocultava o mundo aos meus olhos, que eu perdi as minhas ideias de infância e as
minhas inocentes ilusões.
“A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no
meio daquele turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob
uma atmosfera de luz, de música, de perfumes.
“Tudo me causava admiração; esse abandono com que as
mulheres se entregavam ao seu par de valsa, esse sorriso constante e sem
expressão que uma moça parece tomar na porta da entrada para só deixá-lo à
saída, esses galanteios sempre os mesmos e sempre sobre um tema banal, ao passo
que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer o entusiasmo com que tinha
acolhido a notícia que minha mãe me dera da minha entrada nos salões.
“Estavas nesse baile; foi a primeira vez que te vi.
“Reparei que nessa multidão alegre e ruidosa tu só não
dançavas nem galanteavas, e passeavas pelo salão como um espectador mudo e
indiferente, ou talvez como um homem que procurava uma mulher e só via
toilettes.
“Compreendi-te e, durante muito tempo, segui-te com os
olhos; ainda hoje me lembro dos teus menores gestos, da expressão do teu rosto
e do sorriso de fina ironia que às vezes te fugia pelos lábios.
“Foi a única recordação que trouxe dessa noite, e quando
adormeci, os meus doces sonhos de infância, que, apesar do baile, vieram de
novo pousar nas alvas cortinas de meu leito, apenas foram interrompidos um
instante pela tua imagem, que me sorria.
“No dia seguinte reatei o fio de minha existência, feliz,
tranquila e descuidosa, como costuma ser a existência de uma moça aos dezasseis
anos.
“Algum tempo depois fui a outros bailes e ao teatro, porque
minha mãe, que guardara a minha infância, como um avaro esconde o seu tesouro,
queria fazer brilhar a minha mocidade.
“Quando cedia ao seu pedido e me ia aprontar, enquanto
preparava o meu simples traje, murmurava: — Talvez ele esteja.
“E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas fazia com
que procurasse parecer bela, para te merecer um primeiro olhar.
“Ultimamente era eu quem, cedendo a um sentimento que não
sabia explicar, pedia a minha mãe para irmos a um divertimento, só na esperança
de encontrar-te.
“Nem suspeitavas então que, entre todos aqueles vultos
indiferentes, havia um olhar que te seguia sempre e um coração que adivinhava
os teus pensamentos, que se expandia quando te via sorrir e contraía-se quando
uma sombra de melancolia anuviava o teu semblante.
“Se pronunciavam o teu nome diante de mim, corava e na minha
perturbação julgava que tinham lido esse nome nos meus olhos ou dentro de
minh’alma, onde eu bem sabia que ele estava escrito.
“E, entretanto, nem sequer ainda me tinhas visto; se teus
olhos haviam passado alguma vez por mim, tinha sido num desses momentos em que
a luz se volta para o íntimo, e se olha, mas não se vê.
“Consolava-me, porém, que algum dia o acaso nos reuniria, e
então não sei o que me dizia que era impossível não me amares.
“O acaso deu-se, mas quando a minha existência já se tinha
completamente transformado.
“Ao sair de um desses bailes, apanhei uma pequena
constipação, de que não fiz caso. Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu
achava-me apenas um pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu
curava, sentando-me ao piano e tocando alguma música de bravura.
“Um dia, porém, achei-me mais abatida; tinha as mãos e os
lábios ardentes, a respiração era difícil, e ao menor esforço humedecia-se-me a
pele com uma transpiração que me parecia gelada.
“Atirei-me sobre um sofá e, com a cabeça recostada ao colo
de minha mãe, caí num letargo que não sei quanto tempo durou. Lembro-me somente
que, no momento mesmo em que ia despertando dessa sonolência que se apoderara
de mim, vi minha mãe, sentada à cabeceira de meu leito, chorando, e um homem
dizia-lhe algumas palavras de consolo, que eu ouvi como em sonho:
“— Não desespere, minha senhora; a ciência não é infalível,
nem os meus diagnósticos são sentenças irrevogáveis.
Pode ser que a natureza e as viagens a salvem. Mas é preciso
não perder tempo.
“O homem partiu.
“Não tinha compreendido as suas palavras, às quais não
ligava o menor sentido.
“Passando um instante, ergui tranquilamente os olhos para
minha mãe, que escondeu o lenço e tragou em silêncio o seu pranto e os seus
soluços.
“— Tu choras, mamãe?
“— Não, minha filha… não… não é nada.
“— Mas tu estás com os olhos cheios de lágrimas!… disse eu
assustada.
“— Ah! sim!… uma notícia triste que me contaram há pouco…
sobre uma pessoa… que tu não conheces.
“— Quem é este senhor que estava aqui?
“— É o Dr. Valadão, que te veio visitar.
“— Então eu estou muito doente, boa mamãe?
“— Não, minha filha, ele assegurou que não tens nada; é
apenas um incómodo nervoso.
“E minha querida mãe, não podendo mais conter as lágrimas
que saltavam dos olhos, fugiu, pretextando uma ordem a dar.
“Então, à medida que a minha inteligência ia saindo do
letargo, comecei a refletir sobre o que se tinha passado.
“Aquele desmaio tão longo, aquelas palavras que eu ouvira
ainda entre as névoas de um sono agitado, as lágrimas de minha mãe e a sua
repentina aflição, o tom condoído com que o médico lhe falara.
“Um raio de luz esclareceu de repente o meu espírito.
Estava desenganada.
-O poder da ciência, o olhar profundo, seguro, infalível,
desse homem que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto no meu
seio um átomo imperceptível.
“E esse átomo era o verme que devia destruir as fontes da
vida, apesar dos meus dezasseis anos, apesar de minha organização, apesar de
minha beleza e dos meus sonhos de felicidade!”
Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler entre
as lágrimas que me inundavam as faces e caíam sobre o papel.
Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão por
que me fugia, por que se ocultava, por que ainda na véspera dizia que se tinha
imposto o sacrifício de nunca ser amada por mim.
Que sublime abnegação, minha prima! E, como eu me sentia
pequeno e mesquinho à vista desse amor tão nobre!
José de Alencar
(Continua...)
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