«A Menina dos Fósforos»
Ilustração: Rachel Isadora
49- «A MENINA DOS FÓSFOROS»
Fazia tanto frio! A neve não parava de cair no leste
europeu, e a gélida noite aproximava-se. Aquela era a última noite de dezembro,
véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão uma
pobre menina seguia pela rua afora, a cabeça descoberta e os pés
descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas estes não
duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e
ficavam-lhe tão grandes, pesados e encharcados de neve que a menina os perdeu
quando teve de atravessar a rua, correndo, para fugir de um bonde. Um dos
chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que
o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar.
Por isso, a menina
seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no bolso dianteiro do
avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a todos que
passavam, oferecendo: — Quer comprar
fósforos bons e baratos? — Mas o dia lhe tinha sido adverso. Ninguém comprara
os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão sequer.
Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre
criança! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que
se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem
pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o
cheiro delicioso da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano
Novo. Nisso, sim, é que ela pensava, o que lhe enchia de água a boca.
Sentou-se
no chão e encolheu-se no canto de uma varanda. Sentia cada vez mais frio, mas
não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de
fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda; e o padrasto, malvado, seria
capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia calor. A família morava
numa meia-água, um barraco, e o vento metia-se pelos buracos das telhas,
apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos
quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe
faria bem! Se tirasse um, um só palito, do maço, e o acendesse na parede
para aquecer os dedos...! Pegou num fósforo e: Fcht!, a chama espirrou e o
fósforo começou a queimar ! Parecia a chama quente e viva de uma vela, quando a
menina a tapou com a mão.
Mas,
que luz era aquela? A menina imaginou que estava sentada em frente de uma
lareira cheia de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O
lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom...! Mas, o
que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se
apagou e a lareira desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a
ponta do fósforo queimado na mão.
Riscou outro
fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede
tornou-se transparente como vidro. E a menina viu o interior de uma sala de
jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de
louças delicadas, e mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de
ameixas e puré de batatas, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas,
que surpresa e que alegria! De repente, o ganso saltou da travessa e rolou para
o chão, com o garfo e a faca espetados nas costas, até junto da menina. O
fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria.
Acendeu um terceiro
fósforo. Imediatamente se viu ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal.
Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal,
através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de
velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que
enfeitam as vitrines das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou
ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal
começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a
brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direção à terra,
deixando atrás de si um comprido rastro de luz.
«Foi alguém que morreu»,
pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa
para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe à vezes: «Quando vires uma estrela
cadente, um meteorito, é uma alma que vai a caminho do céu.»
Esfregou ainda mais
outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de
pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade!
— Avó! — gritou a menina — leva-me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu
sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como a lareira, como o ganso
assado, e como a árvore de Natal, tão linda. Riscou imediatamente o
punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó
continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante
como se fosse dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a
neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram
ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem
desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus.
Mas
ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída
uma menina, com as faces roxas, um sorriso nos lábios… morta de frio, na última
noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que
ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. — Coitadinha, parece que tentou
aquecer-se! — exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas coisas lindas a
menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da
avó, no Ano Novo.
Hans Christian Andersen
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