41- «SOMBRA»
Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos;
mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Por que de
fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos
séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem
lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e,
contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui
gravados com estiletes de ferro. O ano tinha sido um ano de terror e de
sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na Terra.
Pois muitos prodígios e sinais haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a
terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles,
todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam
um aspecto de desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente
que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do
Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível
Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano,
manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas almas, imaginações
e meditações da Humanidade. Éramos sete, certa noite, em torno de algumas
garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre salão, na sombria
cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia
era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos,
aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento,
privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas
o ressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.
Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não
me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada,
sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de
existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos
e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal
nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que
bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as
chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em
filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no
espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos
sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio
rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros. Não
obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo – que era histérico – , e
cantávamos as canções de Anacreonte – que são doidas -, e bebíamos
intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali
havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio
comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava
ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos,
em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam
interessar-se pela nossa alegria,, na medida em que, talvez, possam os mortos
interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos,
sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não
perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas
profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do
filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos,
ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos
e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros,
onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa,
uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum
homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer
outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento,
mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra
era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de
deus da Grécia, de deus da Caldéia, de deus Egípcio.
E a sombra permanecia
sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem
dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo,
amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra
repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento
em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas
baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano.
E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da
sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: “Eu sou a SOMBRA e
minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias
planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete,
erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados,
espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma
multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava
aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem
relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.
Edgar Allan Poe
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