A 12 de Dezembro de 1877, no Rio de Janeiro, morre o romancista brasileiro José de Alencar. Entre as suas principais obras contam-se: «O Guarani», «Iracema», «Encarnação», «A Pata de Gazela» e «Ubirajara». O conto «Cinco Minutos» vai ter publicação em X capítulos, exactamente como consta do texto original. José de Alencar foi considerado o maior romancista do romantismo brasileiro.
Poet'anarquista
«A Carta, por JPGalhardas»
Mulher Misteriosa
43- «CINCO MINUTOS»
I
É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima.
Mas é uma história e não um romance.
Há mais de dois anos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me
ao Rocio para tomar o ônibus de Andaraí.
Sabe que sou o homem menos pontual que há neste mundo; entre
os meus imensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a
pontualidade, essa virtude dos reis e esse mau costume dos ingleses.
Entusiasta da liberdade, não posso admitir de modo algum que
um homem se escravize ao seu relógio e regule as suas ações pelo movimento de
uma pequena agulha de aço ou pelas oscilações de um pêndulo.
Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais ônibus
algum; o empregado a quem me dirigi respondeu:
— Partiu há cinco minutos.
Resignei-me e esperei pelo ônibus das sete horas. Anoiteceu.
Fazia uma noite de inverno fresca e húmida; o céu estava
calmo, mas sem estrelas.
A hora marcada chegou o ônibus e apressei-me a ir tomar o
meu lugar.
Procurei, como costumo, o fundo do carro, a fim de ficar
livre das conversas monótonas dos recebedores, que de ordinário têm sempre uma
anedota insípida a contar ou uma queixa a fazer sobre o mau estado dos
caminhos.
O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou
escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.
Sentei-me; prefiro sempre o contato da seda à vizinhança da
casimira ou do pano.
O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o
rosto e as formas que se escondiam nessas nuvens de seda e de rendas.
Era impossível.
Além de a noite estar escura, um maldito véu que caía de um
chapeuzinho de palha não me deixava a menor esperança.
Resignei-me e assentei que o melhor era cuidar de outra
coisa.
Já o meu pensamento tinha-se lançado a galope pelo mundo da
fantasia, quando de repente fui obrigado a voltar por uma circunstância bem
simples.
Senti no meu braço o contato suave de um outro braço que me
parecia macio e aveludado como uma folha de rosa.
Quis recuar, mas não tive ânimo; deixei-me ficar na mesma
posição e cismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se
apoiava sobre mim.
Pouco a pouco fui cedendo àquela atração irresistível e
reclinando-me insensivelmente; a pressão tornou-se mais forte; senti o seu
ombro tocar de leve o meu peito; e a minha mão impaciente encontrou uma
mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a medo.
Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e por este
contato voluptuoso, esqueci-me, a ponto que, sem saber o que fazia, inclinei a
cabeça e colei os meus lábios ardentes nesse ombro, que estremecia de emoção.
Ela soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto
causado pelos solavancos do ônibus, e refugiou-se no canto.
Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para
olhar pela portinhola do carro, e, aproximando-me dela, disse-lhe quase ao
ouvido:
— Perdão!
Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto.
Tomei uma resolução heroica.
— Vou descer, não a incomodarei mais.
Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ela
ouvisse, inclinei-me para mandar parar.
Mas senti outra vez a sua mãozinha, que apertava docemente a
minha, como para impedir-me de sair.
Está entendido que não resisti e que me deixei ficar; ela
conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-me abandonado a mão, que eu
beijava respeitosamente.
De repente veio-me uma ideia. Se fosse feia! se fosse velha!
se fosse uma e outra coisa!
Fiquei frio e comecei a refletir.
Esta mulher, que sem me conhecer me permitia o que só se
permite ao homem que se ama, não podia deixar com efeito de ser feia e muito
feia.
Não lhe sendo fácil achar um namorado de dia, ao menos
agarrava-se a este, que de noite e às cegas lhe proporcionara o acaso.
É verdade que essa mão delicada, essa espádua aveludada…
Ilusão! Era a disposição em que eu estava!
A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.
Nesta marcha, o meu espirito em alguns instantes tinha
chegado a uma convicção inabalável sobre a fealdade de minha vizinha.
Para adquirir a certeza renovei o exame que tentara a
princípio: porém, ainda desta vez, foi baldado; estava tão bem envolvida no seu
mantelete e no seu véu, que nem um traço do rosto traía o seu incógnito.
Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar e não se
esconde como uma pérola dentro da sua ostra.
Decididamente era feia, enormemente feia!
Nisto ela fez um movimento, entreabrindo o seu mantelete, e
um bafejo suave de aroma de sândalo exalou-se.
Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou
em minha alma como um eflúvio celeste.
Não se admire, minha prima; tenho uma teoria a respeito dos
perfumes.
A mulher é uma flor que se estuda, como a flor do campo,
pelas suas cores, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume.
Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu modo
de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um
problema algébrico se ela é bonita ou feia.
De todos estes indícios, porém, o mais seguro é o perfume; e
isto por um segredo da natureza, por uma lei misteriosa da criação, que não sei
explicar.
Por que é que Deus deu o aroma mais delicado à rosa, ao
heliotrópio, à violeta, ao jasmim, e não a essas flores sem graça e sem beleza,
que só servem para realçar as suas irmãs?
É decerto por esta mesma razão que Deus só dá à mulher linda
esse tato delicado e sutil, esse gosto apurado, que sabe distinguir o aroma
mais perfeito…
Já vê, minha prima, porque esse odor de sândalo foi para mim
como uma revelação.
Só uma mulher distinta, uma mulher de sentimento, sabe
compreender toda a poesia desse perfume oriental, desse sentido do olfato, que
nos embala nos sonhos brilhantes das Mil e uma Noites, que nos fala da Índia,
da China, da Pérsia, dos esplendores da Ásia e dos mistérios do berço do sol.
O sândalo é o perfume das odaliscas de Istambul e das huris
do profeta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher do Oriente
vive com as gotas dessa essência divina.
Seu berço é de sândalo; seus colares, suas pulseiras, o seu
leque, são de sândalo; e, quando a morte vem quebrar o fio dessa existência
feliz, é ainda em uma urna de sândalo que o amor guarda as suas cinzas
queridas.
Tudo isto me passou pelo pensamento como um sonho, enquanto
eu aspirava ardentemente essa exalação fascinadora, que foi a pouco e pouco
desvanecendo-se.
Era bela!
Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profunda e
inabalável.
Com efeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma
elevada, se fosse feia, não dava sua mão a beijar a um homem que podia
repeli-la quando a conhecesse; não se expunha ao escárnio e ao desprezo.
Era bela!
Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse.
O ônibus parou; uma outra senhora ergueu-se e saiu.
Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma
sombra passar diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando
dei acordo de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.
Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes
suspirada quase imperceptivalmente:
— Non ti scordar di me! …
Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda;
andei como um louco até nove horas da noite.
Nada!
José de Alencar
(continua...)
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