«História de Alibe, o Persa»
O Rei Xá Abbas Presidindo Banquete
53- «HISTÓRIA DE ALIBE, O PERSA»
O Xá Abbas, rei da Pérsia, durante uma viagem, distanciou-se
de todo o seu séquito a fim de passar pelo campo sem ser reconhecido e para aí
apreciar o povo em toda a sua liberdade natural; levou consigo apenas um de
seus cortesãos. “Não conheço absolutamente, disse-lhe o soberano, os
verdadeiros costumes dos homens; tudo o que de nós se aproxima está disfarçado.
É a arte, e não a simples natureza, que se nos apresenta. Quero estudar a vida
rústica e ver essa espécie de homens que é tão desprezada, embora sejam o
verdadeiro sustentáculo de toda sociedade humana. Estou enfadado de ver
palacianos que me observam para me surpreender com lisonjas; preciso ver
agricultores e pastores que não me conheçam”.
Passou ele, com seu
confidente, por muitas aldeias onde havia danças e maravilhava-se ao encontrar,
longe dos palácios, prazeres tranqüilos e nada dispendiosos. Fez uma refeição
numa cabana e, como estivesse com muita fome, após haver andado mais que de
costume, os simples alimentos que aí encontrou souberam-lhe melhor que todas as
finas iguarias de sua mesa. Ao passar numa campina matizada de flores,
marginada por límpido regato, avistou um pastorzinho que tocava flauta à sombra
de um grande olmo, junto a seus carneiros; aproximou-se dele, observou-o,
achou-lhe uma fisionomia agradável, um ar simples e ingênuo, mas nobre e
gracioso.
Os trapos que o pastor
vestia em nada empanavam o brilho de sua beleza. O rei julgou, a principio, que
fosse alguém de nascimento ilustre que se houvesse disfarçado, mas soube pelo
pastor que seu pai e sua mãe habitavam uma aldeia próxima e que seu nome era
Alibe.
A medida que o soberano
o interrogava, ia apreciando nele um espírito firme e sensato. Seus olhos eram
vivos e nada possuíam de violento ou selvagem; a voz era doce, insinuante e
própria para sensibilizar. O rosto nada possuía de rústico, mas sua beleza não
era uma beleza indolente, afeminada. O pastor, de dezesseis anos
aproximadamente, não sabia que era assim como os outros o viam; julgava pensar,
falar, ser, enfim, como todos os outros pastores de sua aldeia; mas, sem
educação, aprendera tudo que a razão ensina àqueles que a ouvem. O soberano,
depois de conversar com ele familiarmente, sentiu-se encantado; foi por ele
informado das condições dos povos, de tudo que os reis nunca vêm a saber da
multidão de bajuladores que os rodeia. De vez em quando se ria da ingenuidade
daquela criança que se expressava com absoluta liberdade; era uma grande novidade
para o rei ouvir alguém falar tão espontaneamente. Fez sinal ao cortesão que o
acompanhava para não dizer quem ele era; porque temia que Alibe perdesse num
instante toda a sua naturalidade e seu encanto, caso soubesse com quem falava.
“Bem vejo, dizia o
príncipe ao cortesão, que a natureza não é menos bela nas condições mais
humildes que nas mais eminentes. Jamais filho algum de rei me pareceu melhor
nascido que este guardador de carneiros; sentir-me-ia muito feliz em ter um
filho tão belo, tão sensato, tão amável. Parece-me apto para tudo e, caso se
tenha o cuidado de instruí-lo, certamente será, algum dia um grande homem;
quero que seja educado junto a mim.”
O rei levou Alibe, que
muito surpreso ficou quando soube a quem havia agradado. Ensinaram-lhe a ler, a
escrever, a cantar e deram-lhe depois professores das artes e ciências que
adornam o espírito. A princípio ficou um tanto maravilhado com a corte, e a
grande modificação do seu destino lhe afetou um tanto o coração. Sua idade e a
valia de que desfrutava, reunidas, alteraram um pouco sua sabedoria e sua
moderação; ao invés do seu cajado, da sua flauta e do seu traje de pastor,
vestiu um traje de púrpura bordado a ouro com um turbante coberto de pedrarias.
Sua beleza superou tudo que a corte possuía de mais agradável; ele se tornou
apto para os negócios mais sérios e mereceu a confiança de seu senhor que,
conhecendo o gosto requintado de Alibe por todas as magnificências de um
palácio, acabou dando-lhe um cargo muito importante na Pérsia, qual seja o de
guardar tudo que o príncipe possui em pedrarias e em alfaias de valor.
Durante toda a vida do
grande xá Abas, a valia de Alibe não cessou de aumentar. A medida que ele ia
alcançando idade mais madura, mais se lembrava de sua condição antiga e muitas
vezes dela sentia saudade: ‘Ó belos dias, dizia consigo, dias inocentes, dias
em que desfrutei uma alegria pura e sem perigo, dias depois dos quais outros
não tive tão aprazíveis, será que não vos tornarei a ver? Aquele que de vós me
privou, ao me dar tantas riquezas, privou-me de tudo.” Quis rever sua aldeia;
comoveu-se em todos os lugares onde outrora dançara, cantara, tocara flauta com
seus companheiros. Fez algum bem a todos os seus parentes e amigos; mas
almejou-lhes como principal felicidade, que jamais deixassem a vida campestre e
nunca experimentassem as desditas da corte.
Tais desditas ele as
sentiu, após a morte do seu bom senhor o xá Abas. A este sucedeu o filho, xá
Sefi. Cortesãos invejosos e dominados pela ambição acharam meios e modos de
preveni-lo contra Alibe: “Ele abusou, diziam, da confiança do falecido rei;
acumulou tesouros imensos e desviou muitas coisas de altíssimo valor, das quais
era o depositário.” 0 xá Sefi era jovem e príncipe; tanto não era necessário
para ser crédulo, desatento e incauto. Teve a vaidade de querer parecer
reformar aquilo que o rei seu pai fizera, e julgar melhor que ele. A fim de ter
um pretexto de destituir Alibe de seu cargo, pediu-lhe, a conselho de seus
cortesãos invejosos, que lhe levasse uma cimitarra guarnecida de diamantes, de
imenso valor, que o rei seu avô costumava cingir nos combates. 0 xá Abas
mandara outrora tirar dessa cimitarra todos os seus belos diamantes e Alibe
provou, com boas testemunhas, que tal coisa fora feita por ordem do falecido
rei, antes de lhe ser dado o cargo.
Quando os inimigos de
Alibe viram que não mais podiam servir-se desse pretexto para perdê-lo,
aconselharam ao xá Sefi que lhe pedisse para fazer, dentro de quinze dias, um
inventário rigoroso de todas as alfaias preciosas, cuja guarda lhe incumbia. Ao
cabo de quinze dias, pediu para ver pessoalmente todas as coisas. Alibe
abriu-lhe todas as portas e mostrou-lhe tudo que ele guardava. Nada faltava:
tudo estava limpo, bem arrumado e conservado com muito zelo. 0 rei, muito
surpreso de encontrar por toda parte tanta ordem e cuidado, quase modificara
sua disposição a favor de Alibe, quando avistou, na extremidade de uma grande
galeria cheia de esplêndidas alfaias; uma porta de ferro, com três enormes
fechaduras. “‘É aí, disseram-lhe ao ouvido os cortesãos invejosos, que Alibe
escondeu todas as coisas preciosas que desviou.
“Logo o rei gritou
encolerizado: “Que guardou aí? Mostre-mo!”
A essas palavras Alibe
atirou-se a seus pés, suplicando-lhe, em nome de Deus, que não lhe tirasse o
que ele possuía de mais precioso sobre a terra: Não é justo que eu perca num
momento o que me resta e que representa meu derradeiro recurso, após haver
trabalhado tantos anos junto ao rei seu pai. Tirai, se quiserdes, o restante,
mas deixai-me isso.”
O rei não teve a menor
dúvida de que se tratava de um tesouro mal adquirido que Alibe reunira; falou
em tom mais alto e fez absoluta questão de que lhe abrissem a portar. Afinal,
Alibe, que estava com a chave, abriu-a pessoalmente. Depararam apenas com o
cajado, a flauta e o traje de pastor que Alibe possuíra outrora, e que muitas
vezes revia com júbilo, receoso de esquecer sua primitiva condição: “Eis,
disse, ó grande rei, os preciosos restos de minha antiga felicidade; nem a
fortuna, nem vosso poder, puderam privar-me deles; eis meu tesouro que conservo
para me enriquecer, quando me tiverdes tornado pobre. Retomai tudo o mais,
deixai-me estas queridas lembranças de meu primeiro estado; ei-los, meus
verdadeiros bens, que jamais me faltarão. Ei-los, estes bens singelos,
inocentes, sempre caros àqueles que sabem contentar-se com o necessário, porque
não se atormentam absolutamente com o supérfluo; ei-los, estes bens que nunca
me causaram um instante de dificuldade; ó queridos instrumentos de uma vida
simples e feliz! Só a vós amo, convosco é que desejo viver e morrer. Porque foi
preciso que outros bens enganadores me viessem iludir e perturbar minha vida?
Eu vo-las restituo, grande rei, todas as riquezas que me vierem de vossa liberalidade;
conservo apenas as que possuía quando o rei vosso pai, veio, com suas mercês,
tornar-me infortunado.”
O rei, ao ouvir essas
palavras, compreendeu a inocência de Alibe e indignando-se com os cortesãos que
o quiseram perder, expulsou-os. Alibe tornou-se o seu principal auxiliar e foi
incumbido dos negócios mais reservados. Mas todos os dias tornava a ver seu
cajado, sua flauta e seu antigo traje, que conservava sempre prontos em seu
tesouro, a fim de retomá-los, mal o destino inconstante perturbasse a sua
situação. Morreu, na extrema velhice, sem nunca ter querido, nem mandado punir
seus inimigos, nem reunir fortuna alguma, deixando apenas a seus parentes o com
que viverem na condição de pastor, que lhe pareceu sempre a mais segura e a mais
feliz.
François Fénelon
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