«Cinco Minutos», por José de Alencar.
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CONTOS».
Poet'anarquista
«Cinco Minutos»
Igreja de Santa Maria Novella, em Florença
43- «CINCO MINUTOS
X
O resto desta história, minha prima, a senhora conhece, com
exceção de algumas particularidades.
Vivi um mês, contando os dias, as horas e os minutos; e
tempo corria vagarosamente para mim, que desejava poder devorá-lo.
Quando tinha durante uma manhã inteira olhado o seu retrato,
conversado com ele, e lhe contado a minha impaciência e o meu sofrimento,
começava a calcular as horas que faltavam para acabar o dia, os dias que
faltavam para acabar a semana e as semanas que ainda faltavam para acabar o
mês.
No meio da tristeza que me causara a sua ausência, o que me
deu um grande consolo foi uma carta que ela me havia deixado e que me foi
entregue no dia seguinte ao da sua partida.
“Bem vês, meu amigo, dizia-me ela, que Deus não quer aceitar
o teu sacrifício. Apesar de todo o teu amor, apesar de tua alma, ele impediu a
nossa união; poupou-te um sofrimento e a mim talvez um remorso.
“Sei tudo quanto fizeste por minha causa e adivinho o resto;
parto triste por não te ver, mas bem feliz por sentir-me amada, como nenhuma
mulher talvez o seja neste mundo.”
Esta carta tinha sido escrita na véspera da saída do
paquete; um criado que viera de Petrópolis e a quem ela incumbira de
entregar-me a caixinha com o seu retrato, contou-lhe metade das extravagâncias
que eu praticara para chegar à cidade no mesmo dia.
Disse-lhe que me tinha visto partir para a Estrela, depois
de perguntar a hora da saída do vapor; e que em baixo da serra referiram-lhe
como eu tinha morto um cavalo para alcançar a barca e como me embarcara numa
canoa.
Não me vendo chegar, ela adivinhara que alguma dificuldade
invencível me retinha, e atribuía isto à vontade de Deus, que não consentia no
meu amor.
Entretanto, lendo e relendo a sua carta, uma coisa me
admirou; ela não me dizia um adeus, apesar de sua ausência e apesar da
moléstia, que podia tornar essa ausência eterna.
Tinha-me adivinhado! Ao mesmo tempo que fazia por me
dissuadir, estava convencida de que a acompanharia.
Com efeito parti no paquete seguinte para a Europa.
Há de ter ouvido falar, minha prima, se é que ainda não o
sentiu, da força dos pressentimentos do amor, ou da segunda vista que tem a alma
nas suas grandes afeições.
Vou contar-lhe uma circunstância que confirma este fato.
No primeiro lugar onde desembarquei, não sei que instinto,
que revelação, me fez correr imediatamente ao correio; parecia-me impossível
que ela não tivesse deixado alguma lembrança para mim.
E de fato em todos os portos da escala do vapor havia, uma
carta que continha duas palavras apenas:
“Sei que tu me segues. Até logo.”
Enfim cheguei à Europa e vi-a. Todas as minhas loucuras e os
meus sofrimentos foram compensados pelo sorriso de inexprimível gozo com que me
acolheu.
Sua mãe dizia-lhe que eu ficaria no Rio de Janeiro, mas ela
nunca duvidara de mim! Esperava-me como se a tivesse deixado na véspera,
prometendo voltar.
Encontrei-a muito abatida da viagem; não sofria, mas estava
pálida e branca como uma dessas Madonas de Rafael, que vi depois em Roma.
Às vezes uma languidez invencível a prostrava; nesses
momentos um quer que seja de celeste e vaporoso a cercava, como se a alma
exalando-se envolvesse o seu corpo.
Sentado ao seu lado, ou de joelhos a seus pés, passava os
dias a contemplar essa agonia lenta; sentia-me morrer gradualmente, à
semelhança de um homem que vê os últimos clarões da luz que vai extinguir-se e
deixá-lo nas trevas.
Uma tarde em que ela estava ainda mais fraca, tínhamo-nos
chegado para a varanda.
A nossa casa em Nápoles dava sobre o mar; o sol,
transmontando, escondia-se nas ondas; um raio pálido e descorado veio enfiar-se
pela nossa janela e brincar sobre o rosto de Carlota, sentada ou antes deitada
numa conversadeira.
Ela abriu os olhos um momento e quis sorrir; seus lábios nem
tinham força para desfolhar o sorriso.
As lágrimas saltaram-me dos olhos; havia muito que eu tinha
perdido a fé, mas conservava ainda a esperança; esta desvaneceu-se com aquele
reflexo do ocaso, que me parecia o seu adeus à vida.
Sentindo as minhas lágrimas molharem as suas mãos, que eu
beijava, ela voltou-se e fixou-me com os seus grandes olhos lânguidos.
Depois, fazendo um esforço, reclinou-se para mim e apoiou as
mãos sobre o meu ombro.
— Meu amigo, disse ela com voz débil, vou pedir-te uma
coisa, a última; tu me prometes cumprir?
— Juro, respondi-lhe eu, com a voz cortada pelos soluços.
— Daqui a bem pouco tempo… daqui a algumas horas talvez…
Sim! sinto faltar-me o ar!…
— Carlota!…
— Sofres, meu amigo! Ah! se não fosse isto eu morreria
feliz.
— Não fales em morrer!
— Pobre amigo, em que deverei falar então? Na vida?…
Mas não vês que a minha vida é apenas um sopro… um instante
que breve terá passado?
— Tu te iludes, minha Carlota.
Ela sorriu tristemente.
— Escuta; quando sentires a minha mão gelada, quando as
palpitações do meu coração cessarem, prometes receber nos lábios a minha alma?
— Meu Deus!…
— Prometes? sim?…
— Sim.
Ela tornou-se lívida; sua voz suspirou apenas:
— Agora!
Apertei-a ao peito e colei os meus lábios aos seus. Era o
primeiro beijo de nosso amor, beijo casto e puro, que a morte ia santificar.
Sua fronte se tinha gelado, não sentia a sua respiração nem
as pulsações de seu seio.
De repente ela ergueu a cabeça. Se visse, minha prima, que
reflexo de felicidade e alegria iluminava nesse momento o seu rosto pálido!
— Oh! quero viver! exclamou ela.
E com os lábios entreabertos aspirou com delícia a aura
impregnada de perfumes que nos enviava o golfo de Ischia.
Desde esse dia foi pouco a pouco restabelecendo-se, ganhando
as forças e a saúde; sua beleza. reanimava-se e expandia-se como um botão que
por muito tempo privado de sol, se abre em flor viçosa.
Esse milagre, que ela, sorrindo e corando, atribuía ao meu
amor, foi-nos um dia explicado bem prosaicamente por um médico alemão que nos
fez uma longa dissertação a respeito da medicina.
Segundo ele dizia, a viagem tinha sido o único remédio e o
que nós tomávamos por um estado mortal não era senão a crise que se operava,
crise perigosa, que podia matá-la, mas que felizmente a salvou.
Casamo-nos em Florença na igreja de Santa Maria Novella.
Percorremos a Alemanha, a França, a Itália e a Grécia;
passamos um ano nessa vida errante e nómada, vivendo do nosso amor e
alimentando-nos de música, de recordações históricas, de contemplações de arte.
Criamos assim um pequeno mundo, unicamente nosso;
depositamos nele todas as belas reminiscências de nossas viagens, toda a poesia
dessas ruínas seculares em que as gerações que morreram, falam ao futuro pela
voz do silêncio; todo o enlevo dessas vastas e imensas solidões do mar, em que
a alma, dilatando-se no infinito, sente-se mais perto de Deus.
Trouxemos das nossas peregrinações um raio de sol do
Oriente, um reflexo de lua de Nápoles, uma nesga do céu da Grécia, algumas
flores, alguns perfumes, e com isto enchemos o nosso pequeno universo.
Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para
fabricar o seu ninho no campanário da capelinha em que nasceram, apenas ela
recobrou a saúde e as suas belas cores, viemos procurar em nossa terra um
cantinho para esconder esse mundo que havíamos criado.
Achamos na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um
verdadeiro berço de relva suspenso entre o céu e a terra por uma ponta de
rochedo.
Aí abrigamos o nosso amor e vivemos tão felizes que só
pedimos a Deus que nos conserve o que nos deu; a nossa existência é um longo
dia, calmo e tranquilo, que começou ontem, mas que não tem amanhã.
Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando
entre as pedras, algumas braças de terra, sol, ar puro, árvores, sombras, …eis
toda a nossa riqueza.
Quando nos sentimos fatigados de tanta felicidade, ela
arvora-se em dona de casa ou vai cuidar de suas flores; eu fecho-me com os meus
livros e passo o dia a trabalhar. São os únicos momentos em que não nos vemos.
Assim, minha prima, como parece que neste mundo não pode
haver um amor sem o seu receio e a sua inquietação, nós não estamos isentos
dessa fraqueza.
Ela tem ciúmes de meus livros, como eu tenho de suas flores.
Ela diz que a esqueço para trabalhar; eu queixo-me de que ela ama as suas
violetas mais do que a mim.
Isto dura quando muito um dia; depois vem sentar-se ao meu
lado e dizer-me ao ouvido a primeira palavra que balbuciou o nosso amor: — Non
ti scordar di me.
Olhamo-nos, sorrimos e recomeçamos esta história que lhe
acabo de contar e que é ao mesmo tempo o nosso romance, o nosso drama e o nosso
poema.
Eis, minha prima, a resposta à sua pergunta; eis por que
esse moço elegante, como teve a bondade de chamar-me, fez-se provinciano e
retirou-se da sociedade, depois de ter passado um ano na Europa.
Podia dar-lhe outra resposta mais breve e dizer-lhe
simplesmente que tudo isto sucedeu porque me atrasei cinco minutos.
Desta pequena causa, desse grão de areia, nasceu a minha
felicidade; dele podia resultar a minha desgraça. Se tivesse sido pontual como
um inglês, não teria tido uma paixão nem feito uma viagem; mas ainda hoje
estaria perdendo o meu tempo a passear pela rua do Ouvidor e a ouvir falar de
política e teatro.
Isto prova que a pontualidade é uma excelente virtude para
uma máquina; mas um grave defeito para um homem.
Adeus, minha prima. Carlota impacienta-se, porque há muitas
horas que lhe escrevo; não quero que ela tenha ciúmes desta carta e que me prive
de enviá-la.
Minas, 12 de agosto.
Abaixo da assinatura havia um pequeno post-scriptum de uma
letra fina e delicada:
“P. S. — Tudo isto é verdade, D…, menos uma coisa.
“Ele não tem ciúmes de minhas flores, nem podia ter, porque
sabe que só quando seus olhos não me procuram é que vou visitá-las e pedir-lhes
que me ensinem a fazer-me bela para agradá-lo.
“Nisto enganou-a; mas eu vingo-me, roubando-lhe um dos meus
beijos, que lhe envio nesta carta.
“Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar a nossa felicidade
ao mundo invejoso.”
José de Alencar
Fim de «Cinco Minutos»
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