sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

OUTROS CONTOS

(Continuação...)

«Cinco Minutos», por José de Alencar.

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Poet'anarquista
«Cinco Minutos»
Barco de Pesca ao Pôr-de-Sol, por Rouault

43- «CINCO MINUTOS»

IX

ERAM seis horas da tarde.
O sol declinava rapidamente e a noite, descendo do céu, envolvia a terra nas sombras desmaiadas que acompanhavam o ocaso.
Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a nossa viagem; lutávamos contra o mar e o vento.
O velho pescador, morto de fadiga e de sono, estava exausto de forças; a sua pá, que a princípio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o frágil barquinho, apenas feria agora a flor da água.
Eu, recostado na popa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando a cada momento ver desenhar-se o perfil do meu belo Rio de Janeiro, começava seriamente a inquietar-me na minha extravagância e loucura.
À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu, esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam do meu espírito.
Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte e fazer uma viagem breve e rápida, do que sujeitar-me a mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam.
Com efeito já tinha anoitecido; e, ainda que conseguíssemos chegar à cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e falar-lhe.
De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciência? Tinha morto um animal, tinha incomodado um pobre velho, tinha atirado às mãos cheias dinheiro, que poderia melhor empregar socorrendo algum infortúnio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança dela.
Concebia uma triste ideia de mim; no meu modo de ver então as coisas, parecia-me que eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estúpida mania; e dizia interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos, é um escravo, que não tem o menor merecimento quando pratica um ato de dedicação.
Tinha-me tornado filósofo, minha prima, e decerto compreenderá a razão.
No meio da baía, metido numa canoa, à mercê do vento e do mar, não podendo dar largas à minha impaciência de chegar, não havia senão um modo de sair desta situação, e este era arrepender-me do que tinha feito.
Se eu pudesse fazer alguma nova loucura, creio piamente que adiaria o arrependimento para mais tarde, porém era impossível.
Tive um momento a ideia de atirar-me à água e procurar vencer a nado a distância que me separava dela; mas era noite, não tinha a luz de Hero para guiar-me, e me perderia nesse novo Helesponto.
Foi decerto uma inspiração do céu ou o meu anjo da guarda que me veio advertir que naquela ocasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade.
Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente.
Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tínhamos trazido; e fizemos uma verdadeira colação de contrabandistas ou piratas.
Caí na asneira de obrigá-lo a beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra para acompanhá-lo e fazer-lhe as honras da hospitalidade. Julgava que deste modo ele restabeleceria as forças e chegaríamos mais depressa.
Tinha-me esquecido de que a sabedoria das nações, ou a ciência dos provérbios, consagra o princípio de que devagar se vai ao longe.
Acabada a nossa magra colação, o pescador começou a remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança.
Assim, docemente embalado pela ideia de vê-la e pelo marulho das ondas, com os olhos fitos na estrela da tarde, que se ia sumindo no horizonte e me sorria como para consolar-me, senti a pouco e pouco fecharem-se-me as pálpebras, e dormi.
Quando acordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto azulado das ondas: era dia claro.
Não sei onde estávamos; via ao longe algumas ilhas; o pescador dormia na proa, e ressonava como um boto.
A canoa tinha vogado à mercê da corrente; e o remo, que caíra naturalmente das mãos do velho, no momento em que ele cedera à força invencível do sono, tinha desaparecido.
Estávamos no meio da baía, sem poder dar um passo, sem poder mover-nos.
Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na cómica posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dor profunda, de uma angústia cruel como a que sofri então.
Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passaram perto, apesar dos nossos gritos, seguiram o seu caminho, não podendo supor que com o tempo calmo e sereno que fazia, houvesse sombra de perigo para uma canoa que boiava tão levemente sobre as ondas.
O velho, que tinha acordado, nem se desculpava; mas a sua aflição era tão grande que quase me comoveu; o pobre homem arrancava os cabelos e mordia os beiços de raiva.
As horas correram assim nessa atonia do desespero. Sentidos em face um do outro, talvez culpando-nos mutuamente do que sucedia, não proferíamos uma palavra, não fazíamos um gesto.
Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco, lembrando-me de que estávamos a 18, e que o paquete devia partir no dia seguinte.
Não era unicamente a ideia de uma ausência que me afligia; era também a lembrança do mal que ia causar-lhe, a ela, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoísta, suporia que a havia abandonado e que ficara em Petrópolis, divertindo-me.
Aterrava-me com as consequências que poderia ter esse fato sobre a sua saúde tão frágil, sobre a sua vida, e me condenava já como assassino.
Lancei um olhar alucinado sobre o pescador e tive ímpetos de abraçá-lo e atirar-me com ele ao mar.
Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça, tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder!
De que me serviam a inteligência, a vontade e essa força invencível do amor, que me impelia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?
Algumas braças d’água e uma pequena distância me retinham e me encadeavam naquele lugar como a um poste; a falta de um remo, isto é, de três palmos de madeira, criava para mim o impossível; um círculo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional.
A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas asas brancas; o peixe, que fazia cintilar um momento seu dorso de escamas à luz das estrelas; o inseto, que vivia no seio das águas e plantas marinhas, eram reis dessa solidão, na qual o homem não podia sequer dar um passo.
Assim, blasfemando contra Deus e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava, entreguei-me à Providência; embrulhei-me no meu capote, deitei-me e fechei os olhos, para não ver a noite adiantar-se, as estrelas empalidecerem e o dia raiar.
Tudo estava sereno e tranquilo; as águas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do mar passava, uma aragem ténue, que se diria hálito das ondas adormecidas.
De repente, pareceu-me sentir que a canoa deixara de boiar à discrição e singrava lentamente; julgando que fosse ilusão minha, não me importei, até que um movimento contínuo e regular convenceu-me.
Afastei a aba do capote e olhei, receando ainda iludir-me; não vi o pescador; mas a alguns passos da proa percebi os rolos de espuma que formavam um corpo, agitando-se nas ondas.
Aproximei-me e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canoa por meio de uma corda que amarrara à cintura, para deixar-lhe os movimentos livres.
Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um sacrifício que eu supunha inútil: não era possível que um homem nadasse assim por muito tempo.
Com efeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na canoa como temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma espécie de burburinho no seu peito largo e forte.
Bebeu um trago de vinho e com o mesmo cuidado deixou-se cair n’água e continuou a puxar a canoa.
Era alta noite quando nesta marcha chegamos a uma espécie de praia, que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desapareceu.
Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir se era fogo, se luz, senão quando uma porta, abrindo-se, deixou-me ver o interior de uma cabana.
O velho voltou com um outro homem, sentaram-se sobre uma pedra e começaram a falar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma história de ladrões.
A minha suspeita, porém, era injusta; os dois pescadores estavam à espera de dois remos que lhes trouxe uma mulher, e imediatamente embarcaram e começaram a remar com uma força espantosa.
A canoa resvalou sobre as ondas, ágil e veloz como um desses peixes de que havia pouco invejava a rapidez.
Ergui-me para agradecer a Deus, ao céu, às estrelas, às águas, a toda a natureza enfim, o raio de esperança que me enviavam.
Uma faixa escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se esclarecendo de gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol.
A cidade começou a erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzela que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente límpida de um rio.
A cada movimento de impaciência que eu fazia, os dois pescadores dobravam-se sobre os remos e a canoa voava. Assim nos aproximamos da cidade, passamos entre os navios, e nos dirigimos à Glória, onde pretendia desembarcar, para ficar mais próximo de sua casa.
Em um segundo tinha tomado a minha resolução; chegar, vê-la, dizer-lhe que a seguia, e embarcar-me nesse mesmo paquete em que ela ia partir.
Não sabia que horas eram; mas há pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um crédito sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhá-la ao fim do mundo.
Já via tudo cor-de-rosa, sorria à minha ventura e gozava da alegre surpresa que ia causar-lhe, a ela que já não me esperava.
A surpresa, porém, foi minha.
Quando passava diante de Villegaignon, descobri de repente o paquete inglês: as pás se moviam indolentemente e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que parece experimentar as suas forças, para precipitar-se a toda a carreira.
Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao ombro de sua mãe e com os olhos engolfados no horizonte, que ocultava o lugar onde tínhamos passado a primeira e última hora de felicidade.
Quando me viu, fez um movimento como se quisesse lançar-se para mim; mas conteve-se, sorriu-se para sua mãe, e, cruzando as mãos no peito, ergueu os olhos ao céu, como para agradecer a Deus, ou para dirigir-lhe uma prece.
Trocamos um longo olhar, um desses olhares que levam toda a nossa alma e a trazem ainda palpitante das emoções que sentiu noutro coração; uma dessas correntes elétricas que ligam duas vidas em um só fio.
O vapor soltou um gemido surdo; as rodas fenderam as águas; e o monstro marinho, rugindo corno uma cratera, vomitando fumo e devorando o espaço com os seus flancos negros, lançou-se.
Por muito tempo ainda vi o seu lenço branco agitar-se ao longe, como as asas brancas do meu amor, que fugia e voava ao céu.
O paquete sumiu-se no horizonte.

José de Alencar

(Continua... amanhã, X e último capítulo do conto, «Cinco Minutos»)

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