domingo, 15 de dezembro de 2013

OUTROS CONTOS

(Continuação...)

«Cinco Minutos», por José de Alencar.

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Poet'anarquista
«Cinco Minutos»
Descanso, por Almeida Júnior 

GIUSEPPE VERDI 
La Donna È Mobile by Verdi, Giuseppe on Grooveshark
«La Donna è Mobile»

43- «CINCO MINUTOS»

IV

A noite estava escura.
Era uma dessas noites de Petrópolis, envoltas em nevoeiro e cerração.
Caminhávamos mais pelo tato do que pela vista, dificilmente distinguíamos os objetos a uma pequena distância; e muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto perdia-se nas trevas.
Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído a alguns passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma luz interior.
É ali.
— Obrigado.
O criado voltou e eu fiquei junto dessa casa, sem saber o que ia fazer.
A ideia de que estava perto dela, que via a luz que a esclarecia, que tocava a relva que ela pisara, fazia-me feliz.
É coisa singular, minha prima! O amor que é insaciável e exigente e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher pode dar, que deseja o impossível, às vezes contenta-se com um simples gozo d’alma, com uma dessas emoções delicadas, com um desses nadas, dos quais o coração faz um mundo novo e desconhecido.
Não pense, porém, que eu fui a Petrópolis só para contemplar com enlevo as janelas de um chalé; não; ao passo que sentia esse prazer, refletia no meio de vê-la e falar-lhe.
Mas como?…
Se soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou a minha imaginação! Se visse a elaboração tenaz a que se entregava o meu espírito para descobrir um meio de dizer-lhe que eu estava ali e a esperava!
Por fim achei um; se não era o melhor, era o mais pronto.
Desde que chegara, tinha ouvido uns prelúdios de piano, mas tão débeis que pareciam antes tirados por uma mão distraída que roçava o teclado, do que por uma pessoa que tocasse.
Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação de uma bela música de Verdi; e foi quanto bastou.
Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquela linda romanza; os que me ouvissem tomar-me-iam por algum furioso; mas ela me compreenderia.
E de fato, quando eu acabei de estropiar esse trecho magnífico de harmonia e sentimento, o piano, que havia emudecido, soltou um trilo brilhante e sonoro, que acordou os ecos adormecidos no silêncio da noite.
Depois daquela cascata de sons majestosos, que se precipitavam em ondas de harmonia do seio daquele turbilhão de notas que se cruzavam, deslizou plangente, suave e melancólica uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a melodia sublime de Verdi.
Era ela que cantava!
Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão profundamente triste, a angústia de que ela repassou aquela frase de despedida:
Non ti scordar di me.
Addio!…
Partia-me a alma.
Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra numa das janelas; saltei a grade do jardim; mas as venezianas descidas não me permitiam ver o que se passava na sala.
Sentei-me sobre uma pedra e esperei.
Não se ria, D…; estava resolvido a passar ali a noite ao relento, olhando para aquela casa e alimentando a esperança de que ela viria ao menos com uma palavra compensar o meu sacrifício.
Não me enganei.
Havia meia hora que a luz da sala tinha desaparecido e que toda a casa parecia dormir, quando se abriu uma das portas do jardim e eu vi ou antes pressenti a sua sombra na sala.
Recebeu-me com surpresa, sem temor, naturalmente, e como se eu fosse seu irmão ou seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza e bastante confiança para dispensar o falso pejo, o pudor de convenção de que às vezes costumam cercá-lo.
— Eu sabia que sempre havias de vir, disse-me ela.
— Oh! não me culpes! se soubesses!
— Eu culpar-te? Quando mesmo não viesses, não tinha o direito de queixar-me.
— Por que não me amas!
— Pensas isto? disse-me com uma voz cheia de lágrimas.
— Não! não!… Perdoa!
Perdoo-te, meu amigo, como já te perdoei uma vez; julgas que te fujo, que me oculto de ti, porque não te amo e, entretanto, não sabes que a maior felicidade para mim seria poder dar-te a minha vida.
— Mas então por que esse mistério?
— Esse mistério, bem sabes, não é uma coisa criada por mim e sim pelo acaso; se o conservo, é porque, meu amigo…, tu não me deves amar.
— Não te devo amar! Mas eu amo-te!…
Ela recostou a cabeça ao meu ombro e eu senti uma lágrima cair sobre meu seio.
Estava tão perturbado, tão comovido dessa situação incompreensível, que me senti vacilar e deixei-me cair sobre o sofá.
Ela sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos, disse-me um pouco mais calma:
— Tu dizes que me amas!
— Juro-te!
— Não te iludes talvez?
— Se a vida não é uma ilusão, respondi, penso que não, porque a minha vida agora és tu, ou antes, a tua sombra.
— Muitas vezes toma-se um capricho por amor; tu não conheces de mim, como dizes, senão a minha sombra!…
— Que me importa? ..
— E se eu fosse feia? disse ela, rindo.
— Tu és bela como um anjo! Tenho toda a certeza.
— Quem sabe?
— Pois bem; convence-me, disse eu, passando-lhe o braço pela cintura e procurando levá-la para uma sala vizinha, donde filtravam os raios de uma luz.
Ela desprendeu-se do meu braço.
A sua voz tornou-se grave e triste.
— Escuta, meu amigo; falemos seriamente. Tu dizes que me amas; eu o creio, eu o sabia antes mesmo que me dissesses. As almas como as nossas quando se encontram, se reconhecem e se compreendem. Mas ainda é tempo; não julgas que mais vale conservar uma doce recordação do que entregar-se a um amor sem esperança e sem futuro?…
— Não, mil vezes não! Não entendo o que queres dizer; o meu amor, o meu, não precisa de futuro e de esperança, porque o tem em si, porque viverá sempre!…
— Eis o que eu temia; e, entretanto, eu sabia que assim havia de acontecer; quando se tem a tua alma, ama-se uma só vez.
— Então por que exiges de mim um sacrifício que sabes ser impossível?
— Porque, disse ela com exaltação, porque, se há uma felicidade indefinível em duas almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma existência, que só têm um passado e um futuro para ambas, que desde a flor da idade até à velhice caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as suas mágoas, revendo-se uma na outra até o momento em que batem as asas e vão abrigar-se no seio de Deus, deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma dessas duas almas irmãs fugir deste mundo, e a outra, viúva e triste, for condenada a levar sempre no seu seio uma ideia de morte, a trazer essa recordação, que, como um crepe de luto, envolverá a sua bela mocidade, a fazer do seu coração, cheio de vida e de amor, um túmulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrível!…
A exaltação com que falava tinha-se tornado uma espécie de delírio; sua voz, sempre tão doce e aveludada, parecia alquebrada pelo cansaço da respiração.
Ela caiu sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente num acesso de tosse.

José de Alencar
(Continua...)

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