326- «CAPITÃO SALGUEIRO MAIA»
Preciso de o dizer e repetir baixinho, de lentamente o
repetir dentro de mim, baixinho e em presença dos meus sentidos, a fim de que
tudo deixe de ser apenas um sonho e se transforme pouco a pouco em realidade.
Sei que devo entrar de madrugada na cidade adormecida, contornar rotundas e
passar os cruzamentos que me levam para o centro, e pensar que tudo o que está
a acontecer-me vai a caminho da verdade, sob o imperativo de quem ordena e
exige que chegue a hora de o tempo e o sonho serem só isso – tempo e
sonho de um país que se perdeu de si e da sua vontade. Os homens sob meu
comando não são mais que sombras de si mesmos; a arma que empunham, um engenho
fora de combate; os carros, uns modestos inventos nossos, brinquedos que todos,
um dia, sonhámos – na memória daquelas guerras em que também eu fui um homem
anterior, em tudo diferente de mim. O que sou agora é um exercício, uma parte
experiente, um resumo do que outrora fui: o guerreiro tímido e assustado que no
corpo traz o medo-sonho da missão noturna que os queridos companheiros me
confiaram e que comigo discutiram e planearam com o secreto e devido pormenor.
Tendo-me perguntado se queria livremente embarcar na noite temerária do golpe
militar, eu de pronto lhes disse que sim, contassem comigo; para trabalhos,
perigos e segredos em que nem eu neles acreditasse ou deles viesse a ter
memória. Eles assim fizeram.
Vim à cidade para tomar a cidade. Visito ruas e casas para
vigiar o sono, o silêncio, a tranquilidade das ruas e das casas. Ocuparei
posições nos bairros antigos de Lisboa, cercando as ruas baixas que vão do
Rossio ao movimento secreto dos barcos no rio; pelos vultos das sentinelas e
pelos passos dos agentes duplos, irei até ao fundo da Grande Noite portuguesa
que dura – disseram-me os mais velhos- há 48 anos soturnos, ao longo dos quais
todos fomos sendo postos de parte, fora da vontade, da raiz, da moral e da
história.
E mais me disseram os queridos companheiros que devia
dispersar por ali os homens certos e os comandos por mim escolhidos, a cortar o
trânsito das ruas e a vigiar os barcos que na altura vogassem no rio – com o
que se poria a cidade suspensa, enchendo-se de boatos e vozes dos próprios
remorsos, a um tempo tranquila e em estado de angústia. Mandarei apontar ao
Tejo os dois formidáveis canhões da guarnição; guardarem as esquinas os meus
soldados mais afoitos e experientes; e emboscarem-se, na sombra dos muros, os
rostos lívidos e determinados. Os demais, por mim chamados e escolhidos, subirão
comigo às zonas do perigo, onde se cumprirá uma única de todas as vontades em
confronto.
É muito simples a minha ideia: cercar o quartel de guarda
nacional, dar-lhe um ultimato para que se renda e me entregue as suas armas, e
depois ficar ali a encher-me de paciência, fome, desconforto, sono e frio,
atento ao que der e vier. Quando me meti nos trabalhos desta missão, jurei que
nela iria até ao fim. Empenhei nisso a palavra e a vida. Sabia-me sujeito tanto
a perder-me como a salvar-me – sendo-me claramente dito que podia tratar-se de
uma viagem longa, louca e sem regresso, feita daquele alvoroço que antecede o
definitivo e fatal esquecimento. O qual só dá passagem para onde a morte é
escura e irreversível. Por isso me despedi da mulher e das filhas. Disposto a
morrer por elas, eis-me contra isto, para melhor ser por isto. Faz sentido a
gente morrer por algo que ame; eu fui sempre, do primeiro dia da infância até
esta madrugada de 25 de Abril de 1974, preparado tanto para o amor como
para a morte.
«Se preciso for» - sublinharam os queridos companheiros -
,«alinhas os carros de combate no Largo do Carmo, apontas os canhões aos
portados e à fachada da fortificação, dás ordem de fogo aos teus, e que haja
choro e ranger de dentes lá dentro – e gritos e braços erguidos, cá fora, nos
vivas à liberdade; e vozes saídas da clandestinidade para berrarem bem alto que
o povo unido jamais será vencido.»
Pode ser que eu morra varrido por uma rajada de metralhadora
ou pela bala do atirador solitário que ficará para contar a história. Ainda
assim, morrerei a meio do maior de todos os gestos da minha vida. Mas pode
acontecer o contrário de tudo isso: vir um mar de povo, erguerem-se as vozes,
encherem-se de flores os canos das espingardas e não ser preciso matar nem
morrer, nem tomar de assalto a corte, nem dar voz de prisão ao rei e aos seus
vassalos. Dizem que em missões como esta vem sempre alguém dizer que o rei vai
nu e que o reino velho, se lhe dão os ventos da agonia, logo de seus fios e
cerzidos se desprende.
Preveniram-me os queridos e honestos companheiros
contra a loucura e o desespero da polícia política, sangrentos cães
beligerantes do ditador. Eu sei que, para eles, defender o reino não é só uma
questão de brio, mas uma ideia de grandeza proporcional à crueldade e à
estupidez do todo-poderoso. Vim, na condição de oficial e cavalheiro, para dar
voz de prisão aos ditadores, não para os julgar ou abater. Oficial e cavalheiro
que sou, entrarei nos largos portões do Carmo, e a ninguém saudarei pelo
caminho até estar certo de o fazer com a dignidade que passa do vencedor ao
vencido. Quando chegar à presença do todo-poderoso, acederei a fazer-lhe uma
pequena mesura, uma discreta vénia de cabeça, como se ainda pudesse confortá-lo
com o olhar, antes de lhe exigir que se renda e se confie aos meus cuidados.
Não que goste dele ou tenha pena da sua velhice, ou me mova qualquer piedade
sobre as injustiças e os danos que ao povo causou – mas tratá-lo-ei sempre por
Vossa Majestade ou por Vossa Excelência.
Se me perguntar de onde venho e a quem devo obediência, qual
a minha condição e como me chamo, responderei a Sua Excelência que venho de
Santarém, às ordens do Movimento das Forças Armadas, tenho o posto de capitão e
o meu nome é Salgueiro Maia.
João de Melo
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