quinta-feira, 13 de novembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Capitão Salgueiro Maia», por João de Melo.

«Capitão Salgueiro Maia»
 Largo do Carmo/ 25 de Abril de 1974

326- «CAPITÃO SALGUEIRO MAIA»

Preciso de o dizer e repetir baixinho, de lentamente o repetir dentro de mim, baixinho e em presença dos meus sentidos, a fim de que tudo deixe de ser apenas um sonho e se transforme pouco a pouco em realidade. Sei que devo entrar de madrugada na cidade adormecida, contornar rotundas e passar os cruzamentos que me levam para o centro, e pensar que tudo o que está a acontecer-me vai a caminho da verdade, sob o imperativo de quem ordena e exige que chegue a hora de o tempo e o sonho serem só isso –  tempo e sonho de um país que se perdeu de si e da sua vontade. Os homens sob meu comando não são mais que sombras de si mesmos; a arma que empunham, um engenho fora de combate; os carros, uns modestos inventos nossos, brinquedos que todos, um dia, sonhámos – na memória daquelas guerras em que também eu fui um homem anterior, em tudo diferente de mim. O que sou agora é um exercício, uma parte experiente, um resumo do que outrora fui: o guerreiro tímido e assustado que no corpo traz o medo-sonho da missão noturna que os queridos companheiros me confiaram e que comigo discutiram e planearam com o secreto e devido pormenor. Tendo-me perguntado se queria livremente embarcar na noite temerária do golpe militar, eu de pronto lhes disse que sim, contassem comigo; para trabalhos, perigos e segredos em que nem eu neles acreditasse ou deles viesse a ter memória. Eles assim fizeram.

Vim à cidade para tomar a cidade. Visito ruas e casas para vigiar o sono, o silêncio, a tranquilidade das ruas e das casas. Ocuparei posições nos bairros antigos de Lisboa, cercando as ruas baixas que vão do Rossio ao movimento secreto dos barcos no rio; pelos vultos das sentinelas e pelos passos dos agentes duplos, irei até ao fundo da Grande Noite portuguesa que dura – disseram-me os mais velhos- há 48 anos soturnos, ao longo dos quais todos fomos sendo postos de parte, fora da vontade, da raiz, da moral e da história.

E mais me disseram os queridos companheiros que devia dispersar por ali os homens certos e os comandos por mim escolhidos, a cortar o trânsito das ruas e a vigiar os barcos que na altura vogassem no rio – com o que se poria a cidade suspensa, enchendo-se de boatos e vozes dos próprios remorsos, a um tempo tranquila e em estado de angústia. Mandarei apontar ao Tejo os dois formidáveis canhões da guarnição; guardarem as esquinas os meus soldados mais afoitos e experientes; e emboscarem-se, na sombra dos muros, os rostos lívidos e determinados. Os demais, por mim chamados e escolhidos, subirão comigo às zonas do perigo, onde se cumprirá uma única de todas as vontades em confronto.

É muito simples a minha ideia: cercar o quartel de guarda nacional, dar-lhe um ultimato para que se renda e me entregue as suas armas, e depois ficar ali a encher-me de paciência, fome, desconforto, sono e frio, atento ao que der e vier. Quando me meti nos trabalhos desta missão, jurei que nela iria até ao fim. Empenhei nisso a palavra e a vida. Sabia-me sujeito tanto a perder-me como a salvar-me – sendo-me claramente dito que podia tratar-se de uma viagem longa, louca e sem regresso, feita daquele alvoroço que antecede o definitivo e fatal esquecimento. O qual só dá passagem para onde a morte é escura e irreversível. Por isso me despedi da mulher e das filhas. Disposto a morrer por elas, eis-me contra isto, para melhor ser por isto. Faz sentido a gente morrer por algo que ame; eu fui sempre, do primeiro dia da infância até esta madrugada de  25 de Abril de 1974, preparado tanto para o amor como para a morte. 

«Se preciso for» - sublinharam os queridos companheiros - ,«alinhas os carros de combate no Largo do Carmo, apontas os canhões aos portados e à fachada da fortificação, dás ordem de fogo aos teus, e que haja choro e ranger de dentes lá dentro – e gritos e braços erguidos, cá fora, nos vivas à liberdade; e vozes saídas da clandestinidade para berrarem bem alto que o povo unido jamais será vencido.»

Pode ser que eu morra varrido por uma rajada de metralhadora ou pela bala do atirador solitário que ficará para contar a história. Ainda assim, morrerei a meio do maior de todos os gestos da minha vida. Mas pode acontecer o contrário de tudo isso: vir um mar de povo, erguerem-se as vozes, encherem-se de flores os canos das espingardas e não ser preciso matar nem morrer, nem tomar de assalto a corte, nem dar voz de prisão ao rei e aos seus vassalos. Dizem que em missões como esta vem sempre alguém dizer que o rei vai nu e que o reino velho, se lhe dão os ventos da agonia, logo de seus fios e cerzidos se desprende.

Preveniram-me os queridos e honestos companheiros contra  a loucura e o desespero da polícia política, sangrentos cães beligerantes do ditador. Eu sei que, para eles, defender o reino não é só uma questão de brio, mas uma ideia de grandeza proporcional à crueldade e à estupidez do todo-poderoso. Vim, na condição de oficial e cavalheiro, para dar voz de prisão aos ditadores, não para os julgar ou abater. Oficial e cavalheiro que sou, entrarei nos largos portões do Carmo, e a ninguém saudarei pelo caminho até estar certo de o fazer com a dignidade que passa do vencedor ao vencido. Quando chegar à presença do todo-poderoso, acederei a fazer-lhe uma pequena mesura, uma discreta vénia de cabeça, como se ainda pudesse confortá-lo com o olhar, antes de lhe exigir que se renda e se confie aos meus cuidados. Não que goste dele ou tenha pena da sua velhice, ou me mova qualquer piedade sobre as injustiças e os danos que ao povo causou – mas tratá-lo-ei sempre por Vossa Majestade ou por Vossa Excelência.

Se me perguntar de onde venho e a quem devo obediência, qual a minha condição e como me chamo, responderei a Sua Excelência que venho de Santarém, às ordens do Movimento das Forças Armadas, tenho o posto de capitão e o meu nome é Salgueiro Maia.

João de Melo

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