segunda-feira, 24 de novembro de 2014

«SAUDADES DA TERRA», POR ANTÓNIO GEDEÃO

«Saudades da Terra», conto poético por António Gedeão.

«Saudades da Terra»
Coreto - Jardim da Estrela/ Lisboa

SAUDADES DA TERRA

Uns olhos que me olharam com demora, 
não sei se por amor se caridade, 
fizeram-me pensar na morte, e na saudade 
que eu sentiria se morresse agora. 
E pensei que da vida não teria 
nem saudade nem pena de a perder, 
mas que em meus olhos mortos guardaria 
certas imagens do que pude ver. 
Gostei muito da luz. Gostei de vê-la 
de todas as maneiras, 
da luz do pirilampo à fria luz da estrela, 
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras. 
Gostei muito de a ver quando cintila 
na face de um cristal, 
quando trespassa, em lâmina tranquila, 
a poeirenta névoa de um pinhal, 
quando salta, nas águas, em contorções de cobra, 
desfeita em pedrarias de lapidado ceptro, 
quando incide num prisma e se desdobra 
nas sete cores do espectro. 
Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria 
quando galga lambendo o dorso dos navios, 
quando afaga em blandícias de cândida luxúria 
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios. 
E também gostei muito do Jardim da Estrela 
com os velhos sentados nos bancos ao sol 
e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho 
e a adormecê-la 
e as meninas a correrem atrás das pombas 
e os meninos a jogarem ao futebol. 

A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer, 
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas, 
gostei muito de ver 
erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas. 
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados 
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente, 
e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados, 
de olhos postos nos olhos, angustiadamente. 
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados, 
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras 
grosseiras, 
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados, 
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras. 
Mas ... saudade, saudade propriamente, 
essa tenaz que aperta o coração 
e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não. 
Saudade, se a tivesse, só de Aquela 
que nas flores se anunciou, 
se uma saudade alguém pudesse tê-la 
do que não se passou. 
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.
Triste de quem não tem, 
na hora que se esfuma, 
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.

António Gedeão

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