«Uma Consulta»
O Médico e a Paciente/ Jan Steen
327- «UMA CONSULTA»
– Dá licença?
– Entre quem é.
– Muito bons dias
– Olé,
Por aqui, minha senhora?
Desculpe vossa excelência
Se a não conhecia agora.
– Sem mais… À sua ciência
Recorrer venho.
– Deveras?
(Senhor me dê paciência!
Nunca tu cá me vieras)
Então que temos?
– Padeço
– Sim? Porém de que doença?
Essa é boa! Acaso pensa
Que eu, porventura a conheço?
– Ah! Não conhece?
– Quem dera!
– Então não o consultava.
– (E eu que muito estimava)
Mas diga, então?
– Eu lhe conto…
Oiça bem. Não perca um ponto.
– Nem um ponto hei de perder
– Ai doutor, doutor, meu peito…
– É do peito que padece?
Quem havia de o dizer?
– E Jesus doutor parece
Que me quer interromper?!
Não era a isso sujeito
– Nem o tornarei a ser…
Vamos lá
– Ora eu começo…
Atenção é o que lhe peço;
Diga-me: que lhe pareço?
Não me acha muito abatida?
– Assim, assim; mas às vezes
A vista pode enganar.
– Não, não. Pode acreditar
Que há já um bom par de meses
É um tormento esta vida.
– Então o que é que sente?
– O que sinto? Ora eu lhe digo:
O doutor é meu amigo?
– Ó! Senhora…
– E é prudente?
Oiça pois: eu dantes era
Fera e rija, que era um gosto!
Ou em Dezembro ou Agosto
Correr o mundo pudera,
Sem no fim me achar cansada
– E hoje?
– Não lhe digo nada
Nem comigo posso já.
– Mau é!
– Quer saber doutor?
Só para vir até cá
Que tormentos não passei!
– Diga-me, se faz favor,
Que idade tem?
– Eu nem sei…
Eu sou mais nova três anos
Que o reitor da freguesia
– (É grande consolação!)
– Tenho ainda outros dois manos
Que mais velhos do que eu são
Porém, como eu lhe dizia
Doutor…
– Que mais sente então?
– A vista sinto estragada,
Até já me custa a ler,
De mais a mais sou nervosa.
Isso não lhe digo nada!
Olhe estou sempre a tremer.
– Faço ideia
– Andava ansiosa
Por consultar o doutor;
Eu tenho em si muita fé
– Lisonjeia-me
– Outra queixa…
Que eu sofro também
– Qual é?
– É dum forte mal de dentes.
Todos me caiem
– Bem, bem
– E os que restam, mal assentes,
Qualquer dia vão também
– É provável
– Ai doutor!
Que cruel enfermidade!
Não acha?
– Acho e o pior…
– Há de curar-me, não há de?
– E então não sente mais nada?
– Nada… ai, sim, tem-me parecido,
Porém, talvez me iludisse…
– Diga
– A semana passada
Como ao espelho me visse…
Pareceu-me ter percebido…
– O quê?
– Que a pele não era
Como dantes, tão macia
– E então?
– Quem visse dissera
Que eram rugas
– (Eu dizia)
E é isso que padece?
– Ainda pouco lhe parece
Doutor?
– Por certo que não.
– Então que doença tenho?
– Em sabê-lo muito empenho
Sempre tem?
– Eu? Pois então!
Para isso o procurei.
– Bem, então sempre lho digo
Mas julgo não ficarei
Por isto, seu inimigo.
– Ó meu doutor!
– O seu mal
É, senhora, de algum perigo.
– Ai Jesus!
– E muita gente
Dele morre
– Ó Santo Deus!
Por quem é não diga tal!
E… morre-se, de repente?
– Conforme
– Pecados meus!
E então é isso que pensa?
Porém ainda me não disse
O nome dessa doença.
E eu sempre o quero saber…
– O nome?
– Sim
– É… velhice!
– E o remédio?
– Morrer?
Júlio Dinis
1 comentário:
Uma consulta com lição de português à borla para muitos que têm a mania que escrevem bem. Um texto riquíssimo em linguagem e pontuação, e que toda a gente percebe. Grande Júlio Dinis!
Obrigado ao blogue!
Enviar um comentário