«À Deriva»
Barcos à Deriva, por Elisha J. Taylor Baker
343- «À DERIVA»
O homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a
picada no pé. Saltou para frente, e ao se voltar com um palavrão, viu a
jararacuçu que se recolhia sobre si mesma; preparava outro ataque.
O homem lançou uma rápida olhada a seu pé, de onde duas gotinhas de sangue
engrossavam dificultosamente, e então sacou o facão da cintura. A víbora viu a
ameaça, e fundiu mais a cabeça no centro mesmo de sua espiral; porém o facão
caiu sobre ela, deslocando-lhe as vértebras.
O homem abaixou-se para olhar a mordida, limpou as gotinhas de sangue, e
durante algum tempo contemplou. Uma dor aguda nascia dos dois pontinhos
violeta, e começava a expandir-se por todo o pé. Apressadamente, amarrou o
tornozelo com o lenço que trazia amarrado à cintura, e seguiu pela picada até
seu rancho.
A dor no pé aumentava, e de repente, o homem sentiu dois ou três fulgurantes
pontadas que como relâmpagos haviam-se irradiado da ferida, até a metade da
panturrilha. Movia a perna com dificuldade; uma sede metálica na garganta,
seguida de uma sede ardente, arrancou-lhe outro palavrão.
Chegou finalmente ao rancho, e abraçou a roda do moinho. O dois pontinhos
violeta desapareciam agora na monstruosa inchação do pé inteiro. Parecia-lhe
enfraquecida, e a ponto de ceder, de tão tensa. O homem quis chamar sua mulher,
mas sua voz se quebrou num grunhido rouco de garganta ressecada. A sede o
devorava.
— Dorotea! — conseguiu lançar um grito. — Me dá cachaça!
Sua mulher correu com um copo cheio, que o homem sorveu de três tragos. Porém
não havia sentido gosto algum.
— Te pedi cachaça, não água! — rugiu de novo. — Quero cachaça!
— Mas é cachaça, Paulino! — protestou a mulher, espantada.
— Não, me deste água! Quero cachaça, te digo!
A mulher correu outra vez, voltando com o garrafão. O homem bebeu um atrás do
outro três copos, porém não sentiu nada na garganta.
— Bom, isto está feio... - murmurou então, olhando seu pé lívido e já com um
brilho gangrenoso. Sobre a intensa atadura do lenço, a carne transbordava como
uma pavorosa morcela.
As dores fulgurantes sucediam-se em relâmpagos contínuos, e chegavam agora à
virilha. Além disso, a atroz sequidão da garganta que o esforço parecia
esquentar mais, aumentava. Quando pretendia encorpar-se, um fulminante vômito
manteve-o meio minuto com a testa apoiada na roda de madeira.
Mas o homem não queria morrer, e descendo à costa, subiu em sua canoa.
Sentou-se na popa e começou a remar até o centro do Paraná. Ali, a correnteza
do rio, que nas imediações do Iguaçu corre por seis milhas, o levaria antes de
cinco horas a Tacurú-Pucú.
O homem, com fatigada energia, pode efetivamente chegar até o meio do rio; no
entanto, ali suas mãos dormentes deixaram cair o remo na canoa, e por causa de
um novo vômito — de sangue esta vez —, dirigiu um olhar ao sol que transpunha a
montanha.
A perna inteira, até metade da coxa, era já um pedaço disforme e duríssimo que
rompia a roupa. O homem cortou a ligadura e abriu a calça com a faca: a parte
inferior desbordou inchada, com grandes manchas lívidas e terrivelmente
dolorosas. O homem pensou que não poderia jamais chegar sozinho a Tacurú-Pucú,
e decidiu pedir ajuda a seu compadre Alves, embora fizesse muito tempo
estivessem intrigados um com o outro.
A correnteza do rio precipitava-se agora para a costa brasileira, e o homem pode
facilmente atracar. Arrastou-se pela picada costa acima, porém a vinte metros,
exausto, ficou estendido de costas.
— Alves! — gritou com a força que pode; e prestou atenção em vão.
— Compadre Alves! Não me negue este favor! — clamou de novo, levantando a
cabeça do solo.
No silêncio da selva, não se ouviu um só rumor. O homem teve ainda forças para
chegar até sua canoa, e a correnteza, apoderando-se dela de novo, levou-a à
deriva.
O Paraná corre ali no fundo de uma imensa depressão, cujas paredes, com altura
para lá de cem metros, estreitam funebremente o rio. Desde as margens cercadas
de negros blocos de basalto eleva-se o bosque, negro também. Adiante, às
costas, sempre a eterna muralha lúgubre, em cujo fundo o rio afunilado se
precipita em incessantes erupções de água lodosa. A paisagem é agressiva,
contudo, sua beleza sombria e calma cobra uma majestade única.
O sol havia já caído, quando o homem, estendido no fundo da canoa, teve um
violento calafrio. E, de repente, com assombro, pôs na vertical pesadamente a
cabeça: sentia-se melhor. Somente a perna lhe doía, a sede apagava-se, e seu
peito, livre já, abria-se em lenta inspiração.
O veneno começar a ir-se, não havia dúvida. Achava-se quase bem, e embora não
tivesse forças para mover a mão, contava com a vinda do orvalho para repor-se
todo. Calculou que antes de três horas estaria em Tacurú-Pucú.
O bem-estar progredia e, com ele, uma letargia cheia de recordações. Não sentia
mais nada na perna nem no ventre. Viveria ainda seu compadre Gaona em
Tacurú-Pucú? Por acaso veria também seu ex-patrão, mister Dougald, e o
encarregado de obras?
Chegaria repentinamente? O céu, a poente, abria-se agora num resplendor de
sangue, e o rio se havia avermelhado também. Da costa paraguaia, já em trevas,
a montanha deixava cair sobre o rio sua frescura crepuscular, em penetrantes
eflúvios de flores de laranjeiras e mel silvestre. Um casal de araras cruzou o
céu muito alto e em silêncio até o Paraguai.
Lá em baixo, sobre o rio de ouro, a canoa derivava velozmente, girando de
tempos em tempos sobre si mesma, ante a erupção de um remoinho. O homem que ia
nela se sentia cada vez melhor, e pensava no tempo justo em que havia passado
sem ver seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez, não tanto. Dois anos e nove
meses? Talvez. Oito meses e meio? Isso sim, certamente.
De repente, sentiu que estava gelado até o peito. Que seria? E a respiração...
Ao madeireiro de mister Dougald, Lorenzo Cubilla, havia conhecido em Puerto.
Esperança em Sexta-feira Santa...Sexta-feira? Sim, ou quinta-feira...
O homem estendeu lentamente os dedos da mão.
— Uma quinta-feira...
E parou de respirar.
Horácio Quiroga
Sem comentários:
Enviar um comentário