«Casimiro de Abreu»
Poeta Casimiro de Abreu
338- «CASIMIRO DE ABREU»
Porque disparam em ocasião
de riso tantas ténias engelhadas para arrancar lágrimas dos olhos e desentranhar
suspiros do peito?
Porque sai pueril e oca
a ode que tenta decifrar essas tristezas suavíssimas que a perfumada aragem da
saudade traz, em tropel, dos jardins do passado para adejarem em confusa nuvem
sobre o nosso espírito, assim como no cabeço de solitário penhasco se esvoaça à
hora do sol poente a revoada de aves marinhas advindas no equinócio de região
longínqua?
Porque redunda em estrido
fragor de palavras o hino patriótico que dá no ouvido a toada e não verte
dentro o suco do entusiasmo, o qual, ao primeiro rebate da musa épica, devia
logo pulular nas veias, retremer nos músculos, trovejar no cérebro?
Porque descache em
vulgaridade chocha, que faz sorrir ou descrer a mulher, a palavra do amor, que
lhe devia cair na alma, como em lábio febricitante a fresquíssima gota do
orvalho matutino, que refrigera e delicia, sem matar a sede, sem estancar a ansia,
sem apagar a febre?
E' porque nem é de aflito
essa tristeza, nem de melancólico essa mágoa, nem de apaixonado essa paixão,
nem de amante esse amor.
Para ser poeta é
preciso ter fé em alguma coisa, disse Garrett, e então consignou em breve termo
o aforismo porque deviam principiar todas as artes poéticas.
Antes de lêr
Aristóteles, Horácio, Vida e Despreaux, antes de perguntar à inteligência se
ela pode com o alimento que há de enrijá-la, antes de a ungir para a luta com
os unguentos da imortalidade, cumpre interrogar o coração, porque é lá que deve
existir o principal elemento que constitui os poetas. Revela acreditar seja em
que for: no heroísmo como Homero, na pátria como Camões, na gloria como Tasso,
na religião como Milton, na duvida como Biron, na liberdade como Hugo, na família
como Lamartine; na vida ou na eternidade: Horácio ou Dante, a realidade ou a
visão. Mas cumpre acreditar de dentro e do íntimo com uma convicção entranhada
e profunda, d'essas que instam, pungem, abalam, decidem, e quando chegam a
revelar-se não se traduzem pela palavra, antes pelo grito. Não é placidez oratória
compassando a dicção, aparando o metro, sobrepesando a figura, joeirando o
vocábulo; é o ímpeto, é o arrobo, é a audácia, palpitando no lábio, fuzilando
nos olhos, latejando nas fontes. A criação intelectual pode em tal conjuntura
não ser rigorosamente métrica, mas poética há de ser por força. E antes isso:
antes a poesia sem o verso do que o verso sem a poesia; antes verdadeiro poeta
pelo coração do que exímio versejador pela cabeça.
Casimiro de Abreu,
autor d'este belo livro das Primaveras, que eu acabo de fechar, suscitando-me
as reflexões que deixo escritas, é d'elas o melhor exemplo. Desconhece os
segredos da linguagem com que se confeita a pobreza do espírito, não estudou em
alheios moldes a forma em que tem que vazar-se a inspiração, não aprendeu a
mecânica da palavra nem o contraponto da versificação. Não é um génio
desenvolvido nem um grande literato; é uma grande alma e um grande infeliz. Não
verseja, poeta; não canta, suspira, lamenta-se, chora. Diz-nos singelamente o
que sente, dá-nos em cada verso um sorriso ou uma lágrima, em cada estrofe um
pedaço da sua alma, e sem o querer, sem o pensar, talvez, oferece-nos no seu livro
das Primaveras, mera colecção de poesias fugitivas, o completo romance d'um
coração, um poema inteiro, cujo herói é o autor.
O argumento d'esse
livro, em um só canto, conciso e breve como a dor intensa, é o sumário da
biografia exata do poeta.
...
Se Casimiro d'Abreu
aliasse uma educação literária à pura sensibilidade da sua alma, à elevação do
seu espírito, à clareza do seu critério, e ao pendor da sua índole
profundamente melancólica e cismadora, abalanço-me a dizer que o seu nome seria
hoje o do mais perfeito poeta que tem botado a moderna geração literária em
Portugal e no Brasil.
Casimiro d'Abreu tem
vinte anos! e o seu livro exala de todas as folhas o perfume suavíssimo d'esse
madrugar da existência tão esplêndido sempre de luz e de harmonia, d'entusiasmo
e d'amor...
Oh! dá que eu saúde a
tua memória, meu divino rapaz, que tiveste a coragem de o ser, e de tal te
prezares n'este século em que se finge a duvida, o desalento, e a descrença aos
dezoito anos! n'este século em que não há convivas ao alegre banquete da
mocidade, porque os imberbes tomam o seu café e palitam os dentes em jejum!
n'este século em que o espírito impotente tomou por moda descorar os beiços e
pintar pés de galinha ao canto dos olhos!...
Bem hajas tu, que
foste verdadeiramente poeta no meio dos sensaborões, porque verdadeiramente
foste sincero entre os presumidos!
...
Pouco tempo depois
Casimiro d'Abreu exalava o seu último suspiro, contando 22 anos!
O livro que deixou ai
está. E, o poema duma existência, baseado nos mais singelos elementos de
poesia: viver sofrendo, amar esperando, e morrer sorrindo.
F. D. Ramalho Ortigão
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