«Sobre a Leitura»
Jovem Rapaz Lendo, por Ignat Bednarik
332- «SOBRE A LEITURA»
Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido
tão plenamente como aquelas que pensamos ter deixado passar sem vivê-los,
aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Era como se tudo
aquilo que para os outros os transformava em dias cheios, nós desprezássemos
como um obstáculo vulgar a um prazer divino: o convite de um amigo para um jogo
exatamente na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol que nos
forçava a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, a merenda que nos
obrigavam a levar e que deixávamos de lado intocada sobre o banco, enquanto
sobre nossa cabeça o sol empalidecia no céu azul; o jantar que nos fazia voltar
para casa e em cujo fim não deixávamos de pensar para, logo em seguida, poder
terminar o capítulo interrompido, tudo isso que a leitura nos fazia perceber
apenas como inconveniências, ela as gravava, contudo, em nós, com uma lembrança
tão doce (muito mais preciosa, vendo agora à distância, do que o que líamos
então com tanto amor) que se nos acontece ainda hoje folhearmos esses livros de
outrora, já não é senão como simples calendários que guardamos dos dias perdidos,
com a esperança de ver refletidas sobre as páginas as habitações e os lagos que
não existem mais.
Quem, como eu, não se lembra dessas leituras feitas nas
férias, que íamos escondendo sucessivamente em todas àquelas horas do dia que
eram suficientemente tranquilas e invioláveis para abrigá-las. De manhã,
voltando do parque, quando todos “tinham ido fazer um passeio”, eu me metia na
sala de jantar, onde, até a ainda distante hora do almoço, ninguém, senão a
velha Félice, relativamente silenciosa, entraria, e onde não teria como
companheiros de leitura mais do que os pratos coloridos pendendo nas paredes, o
calendário cuja folha da véspera havia sido há pouco arrancada, o pêndulo e o
fogo que falam sem pudor que se lhes responda, e cujo suaves propósitos vazios
de sentido não substituem – como as palavras dos homens – o sentido das
palavras que se leem. Instalava-me numa cadeira ao pé do fogo de lenha, do
qual, durante o almoço, o tio madrugador e jardineiro diria: “Não é ruim”!
Suporta-se muito bem um pouco de calor do fogo, posso garantir que às seis
horas fazia bastante frio na horta. Antes do almoço quem poria fim, sem pena, à
leitura. De tempos em tempos, ouvia-se o barulho da bomba que fazia a água
correr e também levantar os olhos e olhá-la através dos vidros fechados da janela,
ali, bem perto, na única álea do jardinzinho que margeava com tijolos e
faianças em meias-luas suas platibandas de amores-perfeitos: amores perfeitos
colhidos, parece, nesses céus tão bonitos, esses céus versicolores e como que
refletidos dos vitrais da igreja que se viam às vezes entre os tetos da vila,
céus tristes que apareciam antes das tempestades ou depois, já bastante tarde,
quando o dia estava prestes a terminar.
…
Já era meio-dia, fazendo com que meus pais pronunciassem as
palavras fatais: “Venha, feche seu livro, vamos almoçar”.
Marcel Proust
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