21 de Novembro de 1694, nasce Voltaire, pseudónimo de François-Marie Arouet,
escritor e filósofo francês, autor de «Candide» e do «Tratado
sobre a Tolerância».
Poet'anarquista
«Sonho de Platão»
Platão (detalhe por Michelangelo)
335- «SONHO DE PLATÃO»
Platão sonhava muito, e não menos se tem sonhado até agora.
Imaginava ele que o ser humano era outrora duplo e que, como castigo de suas
faltas, foi dividido em macho e fêmea.
Demonstrara que não pode haver senão cinco mundos perfeitos,
porque, na matemática, só há cinco corpos regulares. A sua República foi um de
seus grandes sonhos. Sonhara ainda que o dormir nasce da vigília e a vigília do
dormir, e que se perde infalivelmente a vista contemplando um eclipse, a não
ser numa bacia d’água.
Eis aqui um de seus sonhos, que não é dos menos
interessantes. Fantasiou que o grande Demiurgo, o eterno Geômetra, depois de
povoar o infinito de globos inumeráveis, quis experimentar a ciência dos gênios
que haviam testemunhado o seu trabalho. Deu a cada um deles uma pequena porção
de matéria para que a afeiçoasse a seu modo, da mesma forma que Fídias e Zeuxis
distribuiriam a seus discípulos o material para fazerem estátuas e quadros, se
é permitido comparar as pequenas coisas às grandes.
Demogórgon recebeu, como partilha a porção de lama que se
chama a terra; e, tendo-a arranjado tal como hoje a vemos, julgava ter feito
uma obra-prima. Pensava haver subjugado a inveja e esperava elogios, até mesmo
de seus confrades; muito surpreso ficou de ser recebido com forte vaia.
Um deles, que não poupava gracejos, disse-lhe: — Na verdade,
fizeste um excelente trabalho: dividiste o teu mundo em dois e puseste um
grande espaço d’água entre os dois hemisférios, a fim de que não houvesse
comunicação entre ambos. Os humanos vão enregelar-se nos teus dois pólos e
morrer de calor na tua linha equatorial. Distribuíste prudentemente, pelas
terras, grandes desertos de areia, para que os viajantes morressem de fome e de
sede. Estou muito satisfeito com os teus carneiros, as tuas vacas e as tuas
galinhas; mas, francamente, não vou muito com as tuas cobras nem com as tuas
aranhas. As tuas cebolas e alcachofras são excelentes; mas não concebo qual foi
a tua intenção ao cobrir a terra de tantas plantas venenosas, a menos que
tivesses o desejo de envenenar seus habitantes. Parece-me, por outro lado, que
formaste umas trinta espécies de macacos, muito mais espécies de cães e apenas
quatro ou cinco espécies de homens; é verdade que deste a este último animal
aquilo a que chamas razão; mas, para te falar com toda a sinceridade, essa tal
razão é demasiado ridícula e muito se aproxima da loucura. Parece-me aliás que
não fazes grande caso desse animal de dois pés, visto lhe haveres dado tantos
inimigos e tão pouca defesa, tantas doenças e tão poucos remédios, tantas
paixões e tão pouca sabedoria. Pelo que se vê, não queres que fiquem muitos
desses animais sobre a face da terra: pois, sem contar os perigos a que os
expões, arranjaste de tal modo as coisas que um dia a varíola arrebatará
regularmente todos os anos a décima parte dessa espécie e a irmã dessa varíola
envenenará a fonte da vida nos nove décimos restantes; e, como se ainda não
bastasse, fizeste de modo que metade dos sobreviventes se ocupará em demandas e
a outra metade em matar-se. Eles, sem dúvida, muito te ficarão devendo, e
fizeste na verdade uma bela obra.
Demogórgon enrubesceu: bem sentia que na sua obra havia mal
moral e mal físico; mas sustentava que havia mais bem que mal. — É fácil
criticar – disse ele, – mas achas tão fácil fazer um animal que seja sempre
razoável, que seja livre, e que jamais abuse da sua liberdade. Pensas que,
quando se tem de nove a dez mil plantas para fazer proliferar, seja tão fácil
impedir que algumas dessas plantas tenham qualidades nocivas? Imaginas que, com
certa quantidade de água, de areia, de lama e de fogo, não se possa ter nem mar
nem deserto?
Acabas, senhor trocista, de arranjar o planeta Marte;
veremos como te houveste com os teus costados e que belo efeito não hão de
fazer as tuas noites sem lua; veremos se entre a tua gente não há nem loucura
nem doença.
Com efeito, os gênios examinaram Marte e caíram de rijo
sobre o galhofeiro. Nem o grave gênio que modelara Saturno foi poupado; seus
confrades, os fabricadores de Júpiter, de Mercúrio, de Vênus, tiveram cada um
de suportar censuras.
Escreveram grossos volumes e brochuras; disseram frases de
espírito; fizeram canções, ridicularizaram-se uns aos outros; as facções se
desmandaram na linguagem; até que o eterno Demiurgo impôs silêncio a todos: —
Fizestes (lhes disse ele) coisas boas e coisas más, porque tendes muita
inteligência e sois imperfeitos; as vossas obras durarão somente algumas
centenas de milhões de anos; após o que, já possuindo mais experiência, haveis
de fazer coisa melhor: só a mim é dado fazer coisas perfeitas e imortais. Eis o
que Platão ensinava aos discípulos. Quando parou de falar, um deles disse-lhe:
E aí então vós acordastes.
Voltaire
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