Fernando Pessoa
Poeta Português
Pensamento...
A Nossa Crise Mental
- Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos — político,
moral e intelectual?
- A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de
civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma
contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe
de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este
ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A
aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos
amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que
o povo não é colectivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um
verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um
indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos
não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na
Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode
portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita
— como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma
Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a
ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar.
(Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima).
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não
perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu
conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser
tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser
nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente
havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio
que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência
da nossa crise.
As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise
política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral
é que desde 1580 — fim da Renascença em nós e de nós na Renascença — deixou de
haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram
os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga
portuguesa, que é mais moderno que o português e é o resultado de estarem
interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não
termos consciência disto.
Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o
que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.
Fernando Pessoa
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