«O Herói do Papel»
Conto de Ludmila Ulitzkaia
341- «O HERÓI DO PAPEL»
Assim que o sol derreteu os grãos de neve escuros, e lavou a
água suja e todo o lixo doméstico depositado durante o inverno – trapos, ossos,
vidros partidos –, começaram a sentir-se no ar um sem número de odores,
sobrepondo-se a todos eles o cheiro doce da terra no início da primavera. Foi
então que Genia saiu para o pátio.
O seu nome era tão ridículo que ele, desde que aprendera a
escrever, o sentia como uma humilhação. Para mais, Genia tinha, de nascença, um
problema nas pernas que o fazia saltar de uma forma esquisita quando andava. A
acrescentar a tudo isso, o nariz, continuamente entupido, obrigava-o a respirar
pela boca, de forma que os lábios estavam sempre secos, o que o fazia lambê-los
constantemente. Para completar, não tinha pai. É certo que metade das crianças
não tinha pai mas, ao contrário das outras, Genia não podia dizer que o pai
havia morrido na guerra: ele nunca tinha tido um pai. Tudo isto o tornava muito
infeliz.
Saiu, portanto, para o pátio, ainda meio convalescente das
suas maleitas de inverno e de primavera, com um gorro de lã enfiado na cabeça,
por cima de um lenço, e um longo cachecol verde enrolado à volta do pescoço. O
sol estava incrivelmente quente. As meninas tinham descido as meias,
enrolando-as à volta das pernas como salsichas. A senhora da casa número sete,
com a ajuda da neta, arrastara uma cadeira para debaixo da janela, e ali se
encontrava sentada, com a cara virada ao sol. O ar, a terra, tudo estava cheio
de vida e emanava força, principalmente as árvores despidas, de onde, a
qualquer momento, pequenas folhas rebentariam alegremente.
Genia estava parado no meio do pátio, escutando,
impressionado, os magníficos sons à sua volta. Um gato gordo atravessava o
pátio na diagonal, colocando, hesitante, as patas na terra molhada. A primeira
bola de lama caiu exatamente entre o rapaz e o gato, que curvou as costas e deu
um salto para trás. Genia estremeceu. Chapiscos de lama bateram-lhe com força
na cara. A segunda bola acertou-lhe nas costas, e ele nem esperou pela
terceira: desatou a correr aos saltos em direção à porta de casa. Um dito
trocista perseguiu-o como uma lança sonora: Genia Manco, limpa o ranho!
Voltou-se. Kolka atirava as bolas de lama, as meninas
riam-se e por detrás deles, encontrava-se aquele a quem todos obedeciam, inimigo
de quem não pertencesse ao seu grupo: o astucioso e destemido Shenka. Genia
correu para a porta de casa. A avó vinha naquele momento a descer as escadas,
uma avó minúscula, com um chapéu castanho na cabeça. Ia passear no jardim. Uma
pele de raposa já gasta, com olhos de âmbar luzidios, repousava-lhe sobre os
ombros.
Naquela noite, quando Genia ressonava por detrás do biombo
verde, a mãe e a avó ficaram bastante tempo sentadas à mesa.
— Porquê? Porque é que andam sempre a fazer-lhe mal? —
perguntou a avó num sussurro.
— Acho que devíamos convidá-los para o aniversário dele —
respondeu a mãe.
— Estás maluca! — disse a avó assustada. — Aquilo não são
crianças, são bandidos!
— Não vejo outra saída — retorquiu a mãe. — Temos de fazer
um bolo, alguma coisa para comer e preparar-lhe uma festa de anos a sério.
— São uns bárbaros e uns bandidos. Vão levar-nos tudo o que
temos em casa — teimava a avó.
— Ora diz lá, o que é que tens que possam roubar-te? —
perguntou a mãe de Genia. — Os teus sapatos velhos, talvez?
— Ora, os sapatos! — a avó soltou um suspiro pesado. — O
rapaz faz-me pena.
Passaram-se duas semanas. Chegou uma primavera suave e
amena. A lama secara. O pátio ficou coberto de erva e, embora os moradores se
esforçassem por sujá‑la novamente, ela continuava limpa e verde. As crianças
brincavam de manhã à noite aos “polícias e ladrões”. As cercas estavam
pintalgadas de setas de giz e carvão, o sinal dos ladrões à solta. Há já duas
semanas que Genia ia à escola. A mãe e a avó trocavam olhares entre si. A avó,
supersticiosa, cuspia por cima do ombro – pelo sim e pelo não. O intervalo
entre duas doenças geralmente não durava mais de duas semanas. De manhã, a avó
levava o neto à escola. Depois das aulas, esperava por ele no átrio,
enrolava-lhe o cachecol verde, pegava-lhe pela mão e levava-o para casa.
Na véspera do dia de anos, a mãe disse a Genia que nesse ano
iam fazer uma festa a sério.
— Convida quem tu quiseres da tua sala e do pátio — sugeriu.
— Não quero ninguém. Por favor, mãe, não! — pediu Genia.
— Tem de ser — respondeu a mãe laconicamente, e o estremecer
das sobrancelhas disse a Genia que nada a demoveria.
Ao anoitecer, a mãe desceu ao pátio e convidou as crianças
para o dia seguinte. Falou ao grupo inteiro, sem diferenciar ninguém; só a Shenka
é que se dirigiu em separado:
— E tu também, Shenka.
Ele olhou-a com uns olhos tão frios e adultos, que ela ficou
embaraçada.
— E porque não? Eu vou — respondeu, impassível.
E a mãe foi começar a preparar a massa do bolo.
Genia olhava tristemente em volta do quarto. O que mais o
preocupava era o piano preto e brilhante. De certeza que mais ninguém tinha em
casa uma coisa daquelas. O armário dos livros e as partituras na prateleira
ainda se desculpavam… Mas Beethoven, aquela horrível máscara preta de
Beethoven! De certeza que alguém iria perguntar maldosamente: “Aquele é o teu
avô? Ou o teu pai?”
Genia pediu à avó que guardasse a máscara. A avó ficou
admirada.
— Mas o que é que te incomoda nela agora? Olha que a tua mãe
recebeu-a de presente, da professora!
E a avó contou, pela infinitésima vez, como a mãe era uma
pianista de talento e como, se não tivesse sido a guerra, teria acabado o
conservatório…
Sobre a mesa posta havia, pouco antes das quatro, uma
terrina com salada de batata, pão torrado com arenque, e pirogas com recheio de
arroz. Genia estava sentado à janela, de costas voltadas para a mesa e tentava
não pensar que dali a nada os seus barulhentos, alegres e irreconciliáveis
inimigos entrariam por ali dentro… Parecia completamente mergulhado na sua
ocupação favorita: fazer um barco de folha de jornal.
Genia era um grande mestre na arte do papel. Passara na cama
centenas de dias da sua vida. Bronquite de outono, anginas de inverno e
constipações de primavera, tudo aguentara com paciência, dobrando pontas e
alisando dobras de folhas de papel, tendo junto de si um livro cinzento azulado
com uma girafa na capa. Intitulava-se “Horas divertidas” e tinha sido escrito
por um sábio, um mágico, o melhor homem do mundo – um tal M. Gershenson. Este
era um grande professor, mas Genia era também um grande aluno. Incrivelmente
dotado para aquele passatempo de papel, já tinha feito coisas que nem
Gershenson ousara imaginar! Genia rodava nas mãos o barquinho incompleto,
esperando, com pavor, a chegada dos convidados.
Chegaram em grupo às quatro em ponto. As irmãs loirinhas, as
convidadas mais novas, entregaram-lhe um grande ramo de margaridas. Os outros
vieram sem prenda. Ordeiramente, todos se sentaram à mesa. A mãe serviu gasosa
caseira com cerejas, e disse:
— Vamos brindar ao Genia, que faz anos hoje.
Cada um pegou no seu copo e brindaram. A mãe puxou o banco
giratório, sentou-se ao piano e tocou “A marcha turca”. As irmãs olhavam
fascinadas para as mãos a deslizar pelas teclas. A mais nova estava com uma
cara assustada, como se fosse desatar a chorar a qualquer momento. Shenka, com
um ar indiferente, comia salada de batata e uma piroga, e a avó rodeava cada
convidado de cuidados, como costumava fazer com Genia. A mãe tocava agora canções
de Schubert. Que cena incrível! Doze crianças mal vestidas, mas limpas e bem
penteadas, comiam em completo silêncio, enquanto uma mulher magra tirava sons
fugidios das teclas do piano. O aniversariante estava sentado, com as mãos
transpiradas, a olhar fixamente para o prato. A música entretanto chegou ao
fim, voou pela janela, e só alguns tons graves ficaram a pairar sob o teto,
antes de seguirem os outros.
— Genia — disse de repente a avó, com voz doce —, não queres
tocar também alguma coisa?
A mãe lançou à avó um olhar alarmado. O coração de Genia
quase parava: eles detestavam-no pelo nome ridículo, pelo andar saltitante,
pelo cachecol comprido e pela avó que ia passear com ele. E agora tinha de
tocar piano à frente deles!
A mãe viu que ele empalidecera, adivinhou a razão e
respondeu:
— Noutro dia. O Genia toca noutro dia.
A corajosa Valka perguntou, incrédula e quase admirada:
— Ele sabe tocar?
A mãe trouxe o bolo. Serviu-se chá. Numa taça redonda havia
bombons, rebuçados de fruta e caramelos. Kolia comia à boca cheia sem vergonha
nenhuma, e metera ainda alguns ao bolso. As irmãs chupavam rebuçados ácidos e
pensavam em quais iriam pegar a seguir. Valka alisava papel de prata em cima do
joelho bicudo. Shenka olhava em volta da sala com à-vontade. Os olhos deslizavam
de um lado para o outro. Por fim, apontou para a máscara e perguntou:
— Tia Mussia! Quem é aquele? Pushkin?
A mãe sorriu e respondeu amavelmente:
— Aquele é Beethoven. Um compositor alemão. Era surdo mas,
mesmo assim, compôs música magnífica.
— Um alemão? — perguntou Shenka alerta.
A mãe apressou-se a ilibar Beethoven de qualquer suspeita.
— Já morreu há muito tempo. Viveu há mais de cem anos, muito
antes do fascismo.
A avó começara já a contar que a tia Mussia recebera a
máscara de presente da professora, mas a mãe olhou-a com um olhar severo e ela
calou-se.
— Querem que vos toque alguma coisa de Beethoven? —
perguntou a mãe.
— Sim, por favor — concordou Shenka, e a mãe puxou novamente
o banco, voltou-o para o piano e tocou a peça preferida de
Genia, “A Marmota”, que, por uma razão qualquer, lhe causava tristeza.
Estavam todos sentados muito quietos, sem o mínimo sinal de
impaciência, embora os rebuçados e os doces já tivessem acabado há muito. A
tensão de Genia afrouxara e, pela primeira vez, sentia até uma espécie de
orgulho: a sua mãe estava a tocar Beethoven e ninguém se ria, todos a escutavam
e olhavam para as mãos fortes correndo sobre as teclas.
A mãe parou de tocar.
— Pronto, chega de música. Vamos jogar alguma coisa. A que é
que gostavam de jogar?
— Talvez às cartas — disse Kolia, sem pensar duas vezes.
— Vamos antes fazer um jogo de prendas — propôs a mãe.
Ninguém sabia o que era. Shenka estava à janela e revirava
nas mãos o barquinho inacabado. A mãe explicou como funcionava um jogo de
prendas, mas ninguém tinha nada para dar. Lília, uma menina com uma trança
complicada, tinha sempre um pente no bolso, mas não queria dá-lo – e se
desaparecesse? Shenka poisou o barquinho em cima da mesa e disse:
— Esta é a minha prenda.
Genia pegou no barquinho, e muito facilmente o terminou.
— Genia, faz também prendas para as meninas — pediu a mãe,
colocando um jornal e duas folhas de papel mais rijo em cima da mesa.
Genia pegou numa folha, pensou um instante, dobrou o papel
ao meio…
As cabeças rapadas dos rapazes e as cabeças com tranças
apertadas das meninas curvaram-se sobre a mesa. Um barco, uma barcaça, um barco
à vela, um copo, uma barrica de sal, um cesto de pão, uma camisa…
Mal Genia acabava uma peça, os outros arrancavam-lha
imediatamente da mão.
— Para mim também, faz-me também alguma coisa!
— Mas tu já tens! Agora é a minha vez!
— Faz-me um copo, Genia, por favor!
— Um boneco, Genia, faz-me um bonequinho!
O jogo estava esquecido. Genia dobrava, alisava, voltava a
dobrar, virava cantos. Uma pessoa, uma camisa, um cão… Esticavam as mãos na sua
direção, ele oferecia aquelas maravilhas de papel e todos sorriam, todos lhe
agradeciam. Puxou uma vez do lenço e assoou-se – e ninguém notou, nem mesmo
ele.
Só em sonhos experimentara uma sensação daquelas. Estava
feliz! Não sentia medo, rejeição, hostilidade. Não era nem um pouco inferior a
eles. Mais ainda: admiravam-lhe um talento trivial, a que nem mesmo ele dava
importância alguma. Pela primeira vez observou-lhes os rostos: não estavam
zangados. Não estavam absolutamente nada zangados.
Shenka virava e revirava uma folha de jornal no parapeito da
janela. Tinha desdobrado o barquinho e tentava dobrá-lo outra vez. Quando viu
que não era capaz, chegou junto de Genia, pôs-lhe a mão no ombro e
perguntou-lhe, tratando-o pela primeira vez pelo nome:
— Ora olha, Genia, e agora, como é que se faz?
A mãe lavava a loiça, sorria e as lágrimas caíam-lhe na água
com sabão.
Feliz, o rapazinho distribuía brinquedos de papel.
Ludmila Ulitzkaia
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