A 19 de Novembro de 2007, morre a escritora húngara Magda Szabó com 90 anos. Romancista, dramaturga, ensaísta e poetisa, Magda Szabó começou a
publicar antes da II Grande Guerra Mundial.
Poet'anarquista
«A Porta»
Excerto de Magda Szabó
333- «A Porta»
[Excerto]
Raramente sonho. Se acontece, acordo sobressaltada, banhada
em suor. Então, estico-me, espero que o coração serene, e devaneio sobre o
poder mágico, irresistível, da noite. Na infância ou na juventude, não tinha
nem bons, nem maus sonhos, só a velhice arrasta os aluviões do passado em massa
cada vez mais compacta, num terror petrificado e tanto mais alarmante quanto
mais tenso e trágico, como jamais vivi, pois, na realidade, acordar assim a
gritar, isso comigo nunca aconteceu.
Os meus sonhos são visões que retornam, absolutamente
idênticas: eu tenho sempre o mesmo sonho. Estou à entrada do nosso prédio, ao
fundo das escadas, atrás do portão, em vidro armado inexpugnável, reforçado por
uma armação de ferro, e tento abrir a fechadura. Fora, na rua, há uma ambulância,
e, através dos vidros, são fluidas as silhuetas dos enfermeiros, de um tamanho
sobrenatural, seus rostos inchados rodeiam-se de um halo, como a Lua. A chave
roda. Mas debato-me em vão, não consigo abrir a porta, e, contudo, tenho de
fazer entrar as ambulâncias, ou vão chegar tarde ao doente. Claro, a fechadura
nem dá de si, e assim fica a porta, como se estivesse soldada à armação de
ferro. Grito por socorro, mas nenhum morador dos três pisos me presta atenção,
nem sequer poderia, pois — dou-me conta — limito-me a mexer os lábios, sem um
som, como um peixe, e o pânico atinge o auge quando percebo que não somente não
posso abrir a porta aos socorristas, como ainda fiquei muda. É nesse instante
que o meu grito de terror me acorda, acendo a luz, procuro combater a asfixia
que se apodera de mim após este sonho, rodeada pela mobília, conhecida, do
quarto, e, por cima da nossa cama, a iconografia familiar, os meus antepassados
parricidas, com dólmanes bordados, à maneira do barroco húngaro, ou Biedermeier,
os meus avós, que tudo veem, e tudo compreendem, únicos que sabem quantas vezes
corri, de noite, a abrir a porta aos primeiros-socorros, às ambulâncias,
quantas vezes imaginei o que aconteceria, enquanto, através da porta fechada,
se ouvia o frufrulhar da ramagem ou os passos silenciosos dos gatos, em vez do
ruído conhecido das ruas silenciosas, durante o dia, se, alguma vez, lutasse em
vão com uma chave, e não desse a volta.
Os retratos sabem tudo, sobretudo, o que prefiro esquecer, o
que já não é sonho. Pois só uma vez, na minha vida, uma única vez, na
realidade, e não no estado de fraqueza cerebral devida ao sono, uma porta se
abriu diante de mim, que não deveria ter aberto quem se resguardava na sua
solidão e na sua miséria impotente, mesmo se o tecto ardente crepitava já sobre
a sua cabeça. Só eu tinha poder para fazer funcionar essa fechadura: quem
rodava a chave confiava mais em mim do que em Deus, e eu, nesse instante fatal,
julgava ser Deus, sábia, ponderada, boa e racional. Estávamos ambas erradas, ela,
porque acreditava em mim, e eu, porque tinha fé excessiva em mim. Agora, também
já não importava, porque não se podia reparar o que acontecera. Pois que
venham, de tempos a tempos, essas Eríneas de alto coturno em sapatos
confortáveis, máscara trágica sob a touca de enfermeiras, e rodeiem a minha
cama, brandindo as espadas de duplo fio que são meus sonhos. Eu espero-as,
todas as noites, ao apagar a luz, e preparo-me para, no meu sono, ouvir retinir
a campainha que faz avançar horror inominável para a porta que não abrirá
jamais.
A minha religião não conhece a confissão individual, são as
palavras do nosso pastor que nos asseveram sermos pecadores, votados à
condenação, porque pecámos, de todos os modos, contra os mandamentos.
Recebemos, assim, a absolvição, sem que Deus exija de nós explicações ou
pormenores.
Dou-os eu, agora.
Não redigi este livro para Deus, que conhece as minhas
entranhas, nem para as sombras, testemunhas que são de tudo, e me vigiam a cada
instante, nas horas acordadas e dormindo, mas para os homens. Vivi, até hoje,
corajosamente, e assim espero morrer, corajosamente e sem mentir, mas, por isso
mesmo, na condição de dizer: eu matei Emerence. E pouco muda que eu não
quisesse destruí-la, mas salvá-la.
Magda Szabó
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