«Para que Construir um Templo Invisível?»
Templo Romano a Endovélico, por JPGalhardas
315- «PARA QUE CONSTRUIR UM TEMPLO INVISÍVEL?»
Por volta do meio dia, Mara telefonou. A conversa deve
ter durando um quarto de hora. Pensei que não desligaria nunca mais. Disse que
estivera relendo minhas cartas; algumas delas tinha lido em voz alta para sua
tia, isto é, parte de algumas delas. (Sua tia dissera que eu devia ser um
poeta.) Estava preocupada com o dinheiro que eu tomara emprestado. Teria eu
condições de pagá-lo no prazo ou devia ela tentar conseguir um empréstimo? Era
estranho que eu fosse pobre - comportava-me como um homem rico. Mas ela se
alegrava de que eu fosse pobre. Da próxima vez faríamos um passeio de bonde a
qualquer lugar. Não fazia questão de clubes noturnos; preferia uma caminhada no
campo ou um passeio pela praia. O livro era maravilhoso - só tinha começado a
sua leitura naquela manhã. Por que não tentava eu escrever? Tinha a certeza de
que eu podia escrever um grande livro. Ela tinha ideias para um livro e me
contaria essas ideias quando voltássemos a nos encontrar. Se eu quisesse me
apresentaria a alguns escritores que conhecia - só teriam satisfação em me
ajudar...
E assim prosseguia ela interminavelmente. Eu estava
entusiasmado e preocupado ao mesmo tempo. Preferia que ela colocasse tudo no
papel. Mas ela raramente escrevia carta, assim dizia.Por que, eu não podia
entender. Sua fluência era maravilhosa. Dizia coisas a esmo, intrincadas,
flamejantes, ou deslizava para um limbo de parênteses pavimentado com fogos de
artifício - admiráveis feitos linguísticos que um escritor com prática lutaria
horas para conseguir. E no entanto suas cartas - lembro o que que tive quando
abri a primeira - eram quase infantis.
Suas palavras, no entanto, produziam um feito inesperado. Em
vez de sair correndo de casa imediatamente depois do jantar naquela noite, como
habitualmente fazia, deitei-me no divã no escuro e caí em profundo devaneio.
- Por que você não tenta escrever?... Esta era frase que tinha ficado
atravessada em minha cabeça o dia inteiro, que se repetia insistentemente,
mesmo no momento em que eu dizia obrigado a meu amigo Mc Gregor pelos dez
dólares que conseguira arrancar-lhe depois das mais humilhantes lisonjas e
adulações.
No escuro comecei a voltar-me para o centro das coisas.
Comecei a pensar naqueles dias muito felizes da infância, nos longos dias de
verão em que minha me segurava pela mão e levava aos campos para ver meus
amiguinhos, Joey e Tony. Quando criança, era impossível penetrar no segredo
daquela alegria oriunda de um senso de superioridade. Aquele sentido extra, que
nos permite participar e ao mesmo tempo observar nossa participação, parecia-me
ser o dom normal de cada um. Eu não tinha consciência de que saboreava todas as
coisas mais do que as outras crianças da minha idade. A discrepância entre mim
e os os outros só me foi revelada à medida que eu crescia.
Escrever, meditava eu, deve ser um ato destituído de
vontade. A palavra, como a profunda corrente oceânica, tem que flutuar na
superfície de seu próprio impulso. Uma criança não tem nenhuma necessidade de
escrever, é inocente. Um homem escreve para destilar o veneno que acumulou
devido à sua maneira falsa de vida. Está tentando recapturar sua inocência e no
entanto tudo que consegue fazer (escrevendo) é inocular no mundo o vírus
da desilusão. Homem nenhum colocaria uma palavra no papel se tivesse a coragem
de viver aquilo em que acreditava. Sua inspiração é desviada na fonte. Se é um
mundo de verdade, beleza e mágica que deseja criar, por que põe milhões
palavras entre si e a realidade daquele mundo? Por que retarda a ação - a não
ser que, como outros homens, o que realmente deseja seja o poder, a fama, o
sucesso. "Os livros são ações humanas na morte", disse Balzac. No
entanto, tendo percebido a verdade, ele deliberadamente entregou o anjo ao
demônio que o possuiu.
Um escritor corteja o seu público tão ignominiosamente como
um político ou qualquer outro saltimbanco; adora levar os dedos ao grande
pulso, receitar como um médico, conquistar um lugar para si mesmo, ser
reconhecido como uma força, receber a taça cheia de adulação, mesmo que isso
demore mil anos. Ele não quer um novo mundo que possa ser estabelecido
imediatamente, porque sabe que jamais seria adequado para ele. Quer um mundo
impossível em que seja um soberano fantoche sem coroa dominado por forças
totalmente fora do seu controle. Contenta-se em dominar insidiosamente - no
mundo fictício dos símbolos - porque a simples ideia de contato com realidades
rudes e brutais o assusta. Certo, tem um domínio da realidade maior do que
outros homens, mas não faz nenhum esforço para impor ao mundo aquela realidade
superior pela força do exemplo. Satisfaz-se apenas em pregar, em arrastar-se na
esteira de desastres e catástrofes, um profeta crocitante da morte sempre sem
honra, sempre apedrejado, sempre evitado por aqueles que, por mais inadequados
que sejam para suas tarefas, estão prontos e dispostos a assumir
responsabilidade pelos negócios do mundo. O escritor verdadeiramente grande não
quer escrever: quer que o mundo seja um lugar em que possa viver a vida da
imaginação. A primeira palavra trepidante que põe no papel é a palavra do anjo
ferido: dor. O processo de colocar palavras no papel equivale a tomar um
narcótico. Observando o crescimento de um livro sob suas mãos, o autor incha-se
com ilusões de grandeza. - Eu também sou um conquistador - talvez o maior dos
conquistadores! O meu dia está chegando. Escravizarei o mundo - pela mágica das
palavras... Et cetera ad nauseam.
A pequena frase - Por que você não tenta
escrever? - envolvia-me, como o fizera desde o início, num atoleiro de
irremediável confusão. Eu queria encantar, mas não escravizar; queria uma vida
mais ampla, mais rica, mas não à custa dos outros; eu queria libertar a
imaginação de todos o homens imediatamente porque sem o apoio do mundo inteiro,
sem um mundo imaginativamente unificado, a liberdade da imaginação se torna um
vício. Eu não tinha respeito por escrever per se, assim como não o tinha
por Deus per se. Ninguém, nenhum princípio, nenhuma ideia tem validez por
si mesma. O que é válido é somente aquele tanto - de tudo, Deus incluído - que
é realizado por todos os homens em comum. As pessoas sempre se preocupam com o
destino do gênio. Eu nunca me preocupei pelo gênio: o gênio toma conta do gênio
num homem. Minha preocupação sempre se voltou para o joão ninguém, para o homem
que se perde na confusão, o homem que é tão comum, tão ordinário, que sua
presença nem chega a ser notada. Um gênio não inspira outro. Todos os gênios
são sanguessugas, por assim dizer. Nutrem-se da mesma fonte - o sangue da vida.
A coisa mais importante para o gênio é se fazer inútil, ser absorvido pelo
fluxo comum, tornar-se um peixe de novo e não uma aberração da natureza. O
único benefício, refleti, que o ato de escrever podia me oferecer, era eliminar
as diferenças que me separavam do próximo. Definitivamente não queria me tornar
o artista, no sentido de me tornar algo estranho, algo à parte e fora da
corrente da vida.
A melhor coisa que há em escrever não é o labor em si de
colocar palavra contra palavra, tijolo sobre tijolo, mas as preliminares, o
duro trabalho inicial, que se faz em silêncio, debaixo de quaisquer
circunstâncias, em sonho assim como acordado. Em suma, o período de gestação.
Homem nenhum jamais consegue escrever o que tencionava dizer: a criação
original, que está acontecendo o tempo todo, quer a gente escreva ou não
escreva, pertence ao fluxo primário: não tem dimensões, forma ou elemento de
tempo. Nesse estado preliminar, que é a criação e não o nascimento, o que
desaparece não sofre destruição; algo que estava ali, algo imperecível como a
memória, ou a matéria, ou Deus, é convocado, e a esse algo nos atiramos como um
galho numa torrente. Palavras, sentenças, ideias, não importa quão sutis ou
engenhosas, os voos mais loucos da poesia, os sonhos mais profundos, as visões
mais alucinantes, nada mais são do que hieróglifos toscos cinzelados em dor e
tristeza para comemorar um evento que é intransmissível. Num mundo
inteligentemente ordenado não haveria necessidade de fazer a tentativa
irracional de registrar tais acontecimentos miraculosos. Na verdade, isso não
faria sentido, pois se os homens apenas parassem para refletir, quem se
contentaria com a falsificação quando o autêntico está à disposição e ao
alcance de todos? Que homem desejaria ligar o rádio e ouvir Beethoven, por
exemplo, quando poderia ele mesmo experimentar as harmonias arrebatadoras que
Beethoven lutou tão desesperadamente para registrar? Uma grande obra de arte,
quando chega a realizar alguma coisa, serve para nos lembrar, ou digamos
melhor, para nos pôr a sonhar com tudo aquilo que é fluido e intangível. Vale
dizer, o universo. Não pode ser entendida; só pode ser aceita ou
rejeitada. Caso aceita, ficamos revitalizados; se for rejeitada, isso nos
diminuirá. O que quer que pretenda ser, não o será: é sempre algo mais a
respeito de que nunca se dirá a última palavra. Ela é tudo o que nela colocamos
devido à fome daquilo que nos negamos cada dia de nossas vidas.
Se nos aceitássemos tão completamente assim, a obra de arte, na
verdade o mundo todo da arte, morreria de subnutrição. Todo mortal como nós
se movimenta sem os pés pelo menos algumas horas por dia, quando os olhos se
fecham e o corpo fica de bruços. A arte de sonhar completamente desperto estará
à alçada de todo homem um dia. Muito antes disso os livros terão deixado de
existir, pois, quando os homens estiverem inteiramente
acordados e sonhando, seus poderes de comunicação (uns com os outros
e com o espírito que anima todos os homens) serão tão realçados que farão o ato
de escrever parecer-se com os grunhidos ásperos e roucos de um idiota.
Penso e tomo consciência de tudo isso, deitado sobre a
memória obscura de um dia de verão, sem ter chegado a dominar, ou sem ter mesmo
displicente tentado dominar a arte do hieróglifo tosco. Antes mesmo de
começar fico enojado com os esforços dos mestres consagrados. Desprovido da
habilidade e do conhecimento para fazer pelo menos um portal na fachada do
grande edifício, critico e lamento a própria arquitetura. Se eu fosse apenas um
minúsculo tijolo na vasta catedral desta fachada antiquada, seria infinitamente
mais feliz; teria vida, a vida de toda a estrutura, mesmo como uma parte
infinitesimal sua. Mas estou do lado de fora, um bárbaro que nem um esboço sabe
fazer, quanto mais uma planta do edifício em que sonha morar. Sonho com um novo
mundo resplandecente magnífico que desmorona assim que a luz é acesa. Um mundo
que desaparece mas não morre, pois basta-me ficar quieto de novo e olhar a
escuridão com os olhos bem abertos que ele reaparece... Existe então um mundo
em mim que é completamente diverso de qualquer mundo que conheço. Não o julgo
propriedade exclusiva minha - só o ângulo de minha visão é que é exclusivo e
portanto único. Se falo a linguagem de minha visão singular, ninguém me
entende; o edifício mais colossal poderá ser erguido e no entanto permanecer
invisível. Este pensamento me atormenta. Para que construir um templo
invisível?
Henry Miller
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